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Críticas

Não toque em meu companheiro

Maria Augusta Ramos revisita a solidariedade sindicalista e reflete para onde estamos caminhando em 2020

Por Luiz Joaquim | 15.07.2020 (quarta-feira)

Bons filmes costumam trazer alguma imagem ou sequência que o sintetiza belamente. Não que os explica nessa única imagem ou sequência, mas que carrega em si uma força sintética sobre sua validade. Em Não toque em meu companheiro (Bra. 2020) tal sequência existe.

Falamos do novo documentário de Maria Augusta Ramos, que estreia hoje (15) por plataformas de streaming (veja relação ao final desse texto), no qual a síntese aparece no sentido dado pelo encadeamento cru, sem meio-termo, de duas imagens montadas por Eva Randolph.

Na primeira imagem temos o lunático e desastroso discurso do presidente Jair Bolsonaro dado às Nações Unidas em setembro de 2019, quando afirma, orgulhoso e apertando os olhos para enxergar o texto no teleprompter, que: “Os livres mercados, as concessões e as privatizações já se fazem presentes hoje no Brasil”.

É o delírio de quem não compreende o próprio país, e não quer compreender, aliado ao desejo da imposição de uma política ultraliberal.

A imagem que Não toque… nos apresenta imediatamente após essa fala é a de uma panorâmica sobre uma comunidade pobre, em São Paulo. Uma imagem que quer apresentar um Brasil real.

A imagem é a porta de entrada para uma particular realidade que o filme vai nos oferecer: a da entrega das chaves dos apartamentos no lote 2 da Barra do Jacaré, em São Paulo, fruto do programa social Minha casa, minha vida, que tem a Caixa Econômica Federal (CEF) como estrutura fundamental.

Ainda no primeiro terço do longa-metragem, antes de atingir esse ponto do programa social (que é o de chegada no filme), Maria Augusta nos situa sobre o seu ponto de partida, que é a histórica movimentação sindical de 1991, quando os trabalhadores da CEF criaram uma estrutura de suporte financeiro a 110 de seus funcionários injustamente demitidos por se oporem às condições trabalhistas de então.

Por um ano, até a renúncia do presidente Fernando Collor em 1992, aqueles 110 profissionais (de agências de Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte) lutaram, com o apoio nacional de sua categoria, pelo direito a reintegração ao cargo público que haviam originalmente conquistado de forma legal.

Corta para o futuro, quase 30 anos depois, com Maria Augusta contrastando as falas hoje de alguns daqueles engajados funcionários da CEF contra as de jovens funcionários apáticos da mesma instituição que, apesar da consciência de uma iminente desgraça que lhes observa de perto, pela proposta de privatização acenada pelo atual Governo Federal, não sabem como articular uma movimentação nacional de baixo para cima (partindo dos trabalhadores para o patronato) para exigir o que é o certo, ou seja, fazer o Estado atuar – com uma estrutura profissional que respeite e dê garantias ao trabalhador -, onde o Estado precisa atuar, particularmente junto a população mais carente.

Trabalhadores veteranos da CEF relembram a experiência de luta em 1991

Outras imagens valiosas feitas aqui por Maria Augusta mostram exatamente o resultado de um trabalho assim – no caso, a entrega das chaves de unidades do Minha casa, minha vida. Não é fácil encontrar palavras que traduzam um momento de tamanha alegria e tão único na vida de milhões de brasileiros – entrar pela primeira vez na casa própria.

A casa própria é, talvez, aquilo que melhor ilustra o sonho número um do brasileiro há, pelo menos, uma centena de anos. Não é pouco. E é esse sonho (entre outros) que a lógica do ultraliberalismo do atual governo quer bagunçar ou dizimar.

Em entrevista ao CinemaEscrito por telefone, por ocasião da exibição de seu filme Futuro junho no Recife em 2015, Maria Augusta explicou como o tema vem lhe atraindo cada vez mais: “Desde a crise financeira de 2008, eu comecei a me interessar pela questão do sistema econômico neoliberal e a influência que ele exerce na vida dos indivíduos e nas relações humanas. É isso que eu quero mostrar através da minha lente” (leia entrevista completa clicando aqui).

Não há dúvida que ela consegue apresentar isso bem em Não toque em meu companheiro, mas, comparativamente, a estrutura em Futuro junho, por exemplo, soou melhor ajustada, ou ainda, mais redonda em suas amarrações. Não significa que Não toque… seja desconjuntado (longe disso), mas é como se o recado dado pedisse por mais, o que, por sua vez, também pode ser bom, estimulando o espectador a, por conta própria, ir atrás de alimento que o torne saudável no entendimento das mazelas do neoliberalismo desenfreado.

Serviço:

Não toque em meu companheiro pode ser visto pelas nas plataformas NetNow, Oi Play, Vivo Play, FilmeFilme e Looke

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