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Críticas

4º Ecrã (2020) – Sertânia

Geraldo Sarno retoma a eterna saga do povo brasileiro pela perspectiva de um errante e da sua revelação

Por Luiz Joaquim | 26.08.2020 (quarta-feira)

Antão está para morrer.

É o começo de Sertânia (Bra., 2019), de Geraldo Sarno, com a câmera de Miguel Vassy solta e rasteira correndo pelo chão do sertão, nos dando a perspectiva de uma cobra, ou de ‘Jararaca’, que é um dos nomes dado a Antão (o ator Vertin Moura): jagunço assassinado pelo próprio líder de seu bando, o capitão Jesuíno (Júlio Adrião).

A morte é uma constante presença na vida do protagonista, que revisita a própria trajetória até o derradeiro momento, num resfoguelar, enquanto, escorado a uma pedra, baleado e esquecido por quem lhe havia jurado gratidão, revê aquilo que lhe foi valioso e misterioso na vida miserável.

E, assim, o espectador vai acompanhando o errático fluxo de rememorações de Antão, numa narrativa engenhosamente amarrada por Sarno, tendo como eixo central a infância órfã de pai de Antão (assassinado em Canudos); seu retorno ao Sertão (de São Paulo) após a morte da mãe; o acesso de Jararaca (Antão) ao bando de Jesuíno; a conquista involuntária de Gavião (Jararaca) sobre a confiança de Jesuíno; e o seu posterior despertar contra a injustiça – “Não atire! Capitão! O povo não tem culpa de passar fome!” –; com a consequente dissidência e conflito contra Jesuíno, que leva ao seu fim.

Jararaca está para morrer.

Sarno parece ter conquistando em Sertânia algo que poucos alcançam no contemporâneo cinema brasileiro quando se tem em mente uma pauta cinematográfica tão cara e tão bem explorada esteticamente na década de 1960 – já apropriada inclusive pelo Sarno, com seu Viramundo (1965).

A pauta cara é a infinita condição de vilipendio sofrida pelo povo (seja rural ou urbano) que, na busca de uma figura paterna, se submete às autoridades, aos coronéis e à bandidagem.  E, nesse contexto, apresenta pelo enredo um herói (Antão), ou anti-herói (Jararaca/Gavião), que desperta para esta condição como uma espécie de consciência coletiva e que, a nós – espectadores -, tenta dar um alerta contra esse mal secular tão entranhado na cultura brasileira.

Já a, no passado, tão bem explorada estética diz respeito a descontinuidade dos acontecimentos, ou simultaneidade deles, a serviço das motivações pessoais de seus protagonistas sob uma fotografia em P&B superexposta que destaca o contraste da terra sobre o homem e vice-versa. Duas obras-primas do Cinema Novo, por exemplo – Deus e o diabo na terra do sol e Os fuzis (para ficarmos nos óbvios) -, logo estalam na cabeça ao ver Sertânia, mas com a distinção do filme de Sarno ser claramente um produto com a personalidade de sua época, e não um arremedo de algo do passado.

Gavião está para morrer.

No caso de Sertânia, o ambiente do cangaço é retomado com um símbolo de coisa cíclica. Talvez como representação de uma violência que nunca nos deixou, em termos de dinâmica social, e que está estabelecida na cara do sertanejo (do povo brasileiro) seja na época de Canudos, ou na do Cangaço, nos anos 1960 e ainda nos dias de hoje – uma mesma expressão de cansaço e penúria.

Em termos discursivo, Sarno ainda reserva espaço para nos provocar com a revelação em cena de sua equipe cinematográfica. Não à toa, num desses momentos do filme, o próprio Gavião nos diz em off que ninguém acreditava que ele e o capitão estivessem duelando. Que era como um teatro. Ou um cinema. Como, no final das contas, o é Sertânia.

Em tempo: Sertânia exibiu na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020, e está disponível online, por streaming, no 4º Ecrã : Festival de Experimentações Audiovisuais. Para acessar o 4º Ecrã gratuitamente, até 30 de agosto, clique aqui.

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