X

0 Comentários

Festivais

48º Gramado (2020) – Por que você não chora?

A contaminação entre cliente e terapeuta como ponto de partida para falar de uma dor silenciosa

Por Luiz Joaquim | 19.09.2020 (sábado)

Começou bem, na noite de ontem (18), o 48º Festival de Cinema de Gramado,  que, pela primeira vez, é transmitido em formato on-line e pela tevê paga (no Canal Brasil, com a competitiva nacional e estrangeira iniciando sempre às 20h).

Curioso observar que os dois longas-metragens agendados para a noite de abertura – o brasiliense Por que você não chora?, de Cibele Amaral, e o argentino El silencio del cazador, de Martin Desalvo – tomam como ponto de partida o relacionamento antagônico entre duas pessoas próximas. No primeiro, entre duas mulheres; no segundo, entre dois homens.

Leia mais sobre El silencio del cazador em texto de Felipe Berardo a ser publicado hoje (19) aqui no CinemaEscrito.

Mas a analogia pára por aí, uma vez que, em Por que você não chora?, o que há é um mergulho (literal, em alguma cenas) em conceitos psicológicos para nos situar na primeira experiência de campo da universitária, estagiária de psicologia, Jéssica (Carolina Monte Rosa). Nesse mergulho, ela assume trabalhar com a paciente/cliente Bárbara (Bárbara Paz) num Acompanhamento Terapêutico (AT) – termo que indica uma prática clínica fora do consultório, acompanhando o cliente lado a lado em seu cotidiano, na sua vida particular. Bárbara sofre de Transtorno de Personalidade Borderline, ou seja, como explica a sinopse do filme: ela é “uma bomba relógio”. Sem dar aviso prévio, Bárbara está sempre pronta a explodir bipolarmente, seja com simpatia, seja com hostilidade, seja com um intenso senso de autodestruição e com a possibilidade do suicídio no horizonte.

No roteiro, escrito pela diretora Cibele Amaral, é desenvolvido um tema caro aos psicólogos, que é a contaminação cliente x terapeuta. Sendo Cibele, ela própria, uma psicóloga e adepta da terapia há muitos anos (sem falar na consultoria feita para o filme com profissionais da área), o roteiro de Por que você não chora? apresenta uma propriedade bastante consistente sobre o tema. Se consideramos que um dos temas do filme se refere à ideação do suicídio, não seria bem-vindo algo menos profissional ou menos cuidadoso como o que Cibele resolve aqui em seu trabalho.

Nesse sentido, Por que você não chora? está a um degrau (basta ganhar o mercado) de tornar-se um hit cinematográfico no universo da psicologia. Em breve vai estar nas ementas dos cursos da área como visionamento obrigatório.

Tal previsão pode soar como uma condenação – tornar-se um filme de nicho –, mas não é, uma vez que a obra de Cibele também funciona bem em termos de entretenimento com educação para o leigo que simplesmente se interessa por cinema. A composição feita por Monte Rosa e Bárbara Paz para suas personagens ajudam o filme nesse sentido.

Monte Rosa, por exemplo, empresta seu rosto com traços simétricos precisos (dos quais o fotógrafo Mauricio Franco aproveita com inteligência), para estabelecer a frieza e secura de sua Jéssica de maneira incômoda e quase impenetrável.

Numa das cenas mais emblemáticas desse bom aproveitamento cênico sobre o rosto da atriz, está aquele em que, por trás do balcão da recepção de um prédio empresarial (num emprego de meio expediente), Jéssica olha fixo para a câmera que se afasta lentamente. Ali o rosto de Jéssica funde-se ao cenário, ela não é humana. É uma coisa programada para funcionar. Como o balcão, como o computador, como a decoração.

Já Bárbara Paz mostra-se absolutamente à vontade em cena nas explosões de euforia e depressão, dando ao espectador uma boa medida do emaranhado de dificuldades para tirá-la daquele lugar por um profissional da psicanálise.

Ainda que previsível em seu desenvolvimento, pela inversão de movimentos das personagens, Por que você não chora? resolve sua trama de maneira envolvente, colocando em destaque o talento de Monte Rosa e Bárbara Paz em papéis tão valiosos, porque complexos, para qualquer ator/atriz.

O crítico e apresentador Roger Lerina debate com Marco Antônio Pereira, ao vivo pela internet, do Palácio dos Festivais em Gramado / Foto: Edison Vara / Agência Pressphoto

CURTAS – Gramado escolheu o já celebrado curta-metragista mineiro Marco Antônio Pereira (do ótimo Teoria sobre um planeta estranho, em Gramado no ano passado), agora as voltas com duas crianças, resolvendo suas ambições cinematográficas em Cordisburgo, cidade natal do realizador.  No novo 4 bilhões de infinitos, o volume do modo ‘inusitado’ está mais baixo que nos trabalhos anteriores do diretor, mas se mantém aqui o incomum ritmo dinâmico, alegre e inocente (como uma dádiva) que Marco Antônio sabe administrar tão bem em seu cinema.

No caso, temos o menino mais velho com a irmã mais nova, Ana Júlia, órfãos de pai, resolvendo-se em casa sozinhos enquanto a mãe cuida de ganhar dinheiro na rua. Nas conversas das crianças, sonhos impossíveis (e saborosos), como, quando crescer, comprar a quantidade de quatro bilhões de infinitos de automóveis. Ou sonhos mais possíveis, como ter para si o ‘cinema’ da escola do menino (no caso, um pequeno projetor multimídia) para ver filmes projetados num lençol. Com o novo filme, Marco Antônio mostra-se, mais uma vez, um craque em transformar histórias não traduzíveis pela escrita, mas totalmente compreensíveis pelo cinema.

O segundo curta da noite veio de São Paulo, Receita de caranguejo, elaborado por sua diretora, Issis Valenzuela, a partir de memórias de suas viagens na infância a Pernambuco, quando a avó ensinava como transformar caranguejo numa refeição. No filme, a praia não é pernambucana, e a experiência se dá entre a protagonista menina e a sua mãe (Thais Melo e Preta Ferreira).

Seguindo uma narrativa mais tradicional, Receita apresenta um contexto mais habitual de relacionamento entre mãe e filha: mãe amorosa, filha pré-adolescente desatenta e interessada em tecnologia, com especial predileção por programas de tevê sobre animais marinhos. Toda a condução do filme parece atingir o seu momento mais tenso, o que nele pode se equiparar a um filme de horror – e Issis resolve bem esse momento: Trata-se do fim da vida dos caranguejos em água fervendo numa panela fechada. Tudo o que temos é um plano fixo, mostrando uma panela tampada sobre o fogo. O som é o que há de mais eloquente aqui, estimulando a imaginação do espectador a partir do ruído dos animais tentando escalar as paredes internas do panelão fechado. Terror absoluto da vida contra a morte.

Acompanhe a entrevista de hoje (19) com os realizadores dos filme exibidos na noite de ontem (18) no vídeo abaixo, hospedado no canal do Festival de Gramado no YouTube.

 

Mais Recentes

Publicidade