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Críticas

Estou Pensando em Acabar com Tudo

O auto-elogio de Kaufman

Por Luiz Joaquim | 14.09.2020 (segunda-feira)

Tem pretensões existenciais este Estou pensando em acabar com tudo (I’m thinking of Ending Things, EUA, 2020), de Charlie Kaufman – disponível na Netflix -, e é certamente o mais pessimista de seus trabalhos. Mais uma vez temos uma história de amor, no caso natimorta, servindo para ilustrar o drama. 

Drama que parece querer exaurir a ideia do que há de inexorável na passagem do tempo na vida humana – ou ainda, o que sobra de humano no “trem em movimento numa linha reta, e sem paradas, que é o tempo”, conforme imagina uma das protagonistas do filme. 

Ela (Jessie Buckley), cujo nome pode ser Lucy, Lucia ou Louisa, é, talvez, uma especialista em física quântica e namora Jake (Jesse Pelmmons) há nem sabe quantas semanas. Talvez sete ou seis. E Estou pensando em acabar… concentra-se na primeira viagem de carro que o casal faz para jantarem na isolada casa dos pais dele. 

A viagem, tanto na ida quanto na volta, transcorre sob intensa nevasca com a tensão concentrada nesses extremos do filme naquilo que o casal desenvolve intelectualmente conversando durante a viagem. Com o detalhe para o fato de que ela não pára de pensar, continuamente – escutamos sua voz em off – que quer pôr fim ao relacionamento.

À parte o encontro no jantar, sobrecarregado com pesada tinta metafórica, com os pais de Jake (vividos por Toni Collette e David Thewlis), Estou pensando em acabar… tem seus momentos mais atraentes acontecendo na troca de diálogos entre o jovem casal, isolados no habitáculo do carro. 

Numa das conversas mais marcantes, falando sobre cinema – em particular sobre Uma mulher sob influência (1974), de John Cassavetes -, Lucy, Lucia ou Louisa começa a falar mal do filme reconhecidamente celebrado. O espectador nem precisa conhecer o estilo literário praticado numa profissional crítica de cinema para perceber que o texto falado pela personagem saiu de uma real crítica de cinema. 

Para esse mesmo espectador atento (ou nem tanto, já que a prévia dica dada por Kaufman é gritante quando Lucy entra no quarto de infância de Jake) não será difícil desconfiar que o texto contra Uma mulher sob influência foi escrito pela influente crítica do The New York Times, Pauline Kael (leia a crítica original de Kael clicando aqui). 

Kaufman aproveita-se da circunstância para provocar a crítica de cinema em si, pondo um texto profundo e originalmente criado para o universo da escrita sendo vomitado na oralidade da namorada de Jake. Na fala, há um forte questionamento sobre a personagem/atriz (Gena Rowlands) no filme de Cassavetes, o que é igualmente provocador para os dias de hoje no que concerne à questões femininas/feministas. 

O que há de atualidade nesse filme – o que o marca como um filme da segunda década do século 21 – são, particularmente, alguma ironias pró-feministas e a talvez anti-feministas também. Kaufman reforça o rigor do politicamente correto ao menos em dois momentos de maneira mais barulhenta: quando Jake chama a atenção da namorada contra piadas usando a palavra ‘marica’; e quando ela o condena por ele tentar ser romântico ao citar uma fala de um filme de 1938, argumentando que a situação da paquera no filme de 80 anos atrás era a de algo não consensual e, portanto, um estupro.  

A certa altura, já no final, quando o universo concentra-se no colégio juvenil de Jake, Kaufman reforça uma ira feminista não resolvida em Lucy, Lucia ou Louisa que soa tão boba quanto poderia soar ao ser escrita por um homem. A dissolução da ira dela resolve-se num abraço com aquele que sempre foi uma vítima (igual as mulheres? num mundo de homens?).  

Como uma espécie de eterno observador, essa vítima tem como limbo existencial uma highschool norte-americana -, ambiente explorado rica e simbolicamente pela cinematografia gringa como o lugar onde nascem os “fracos” ou os “fortes”. Seria ali uma espécie de purgatório para todos que não são, nunca foram, nem nunca serão campeões na/da vida.

Mas Kaufman, repetimos, carrega tanto na tinta, com tantas citações (explícitas ou não) – Tolstói, os escritores Guy Debord, William Wordsworth e David Foster Wallace, a poeta Eva H. D., o artista plástico Ralph Albert Blakelock, Kael, Cassavetes, etc, etc -, que essa sua adaptação cinematográfica (feita a partir do romance de Iain Reid) termina por soar como uma colcha de retalhos, feita com costuras de tantas saliências que incomodam. Um incômodo não para refletirmos sobre aquilo que o filme propõe, mas sim para refletirmos sobre o filme em si. 

É, enfim, um auto-elogio. E, por conseguinte, questionável.

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