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Festivais

44º Mostra de SP (2020) – Dois brasileiros

Retrato sofrido do negro num Brasil do passado e do presente: “Casa de Antiguidades” e “Sobradinho”

Por Luiz Joaquim | 24.10.2020 (sábado)

Casa de antiguidades (Bra., 2020), de João Paulo Miranda Maria, 93 min. 16 anos. Mostra Brasil / Novos Diretores (acessível pela plataforma do Petra Belas Artes, clique aqui) – Curioso que um dos momentos mais fortes deste filme que nos chega celebrado pelo selo ‘Seleção Oficial de Cannes 2020’ está em seus primeiros minutos. Boa parte do crédito deste ótimo momento repousa no rosto do protagonista vivido por Antônio Pitanga, 80 anos de idade. Acontece quando somos colocados diante de um plano fixo que enquadra Cristovam (Pitanga) recebendo uma notícia do executivo estrangeiro de uma fábrica de laticínios no sul do País, para onde o empregado goiano foi transferido. Cristovam terá o salário reduzido, e, nas palavras do executivo, “sozinho, sem família, que alternativa terá um velho, preto se não aceitar a proposta? ”.

Aqui, João Paulo Miranda administra com um rigor preciso de tempo e enquadramento a frieza e a injustiça da situação, condimentadas com a ironia do executivo se dirigindo ao modesto empregado em alemão. Ilustração mais do que eficaz sobre a habitual incomunicabilidade entre patrão e empregado. Mas é na expressão de Pitanga, marcada por toda a sua história de artista negro num País racista, que reside a força do plano. Há nela a marca de impotência e resignação combinadas.

Pitanga como Cristovam, em cena de “Casa de Antiguidades”

Que belo ponto de partida para Casa de antiguidades. Ponto de partida que, na verdade, vem precedido por uma belíssima abertura. As primeiras imagens do filme adiantam sinais do flerte com o universo fantástico no qual o filme está interessado. Adianta, literalmente, que o universo ali é branco, e não preto. Mas o que aqui soa promissor parece ir perdendo a força no decorrer de sua extensão, mesmo com a eloquente alegoria estabelecida pelo filme para a figura vilipendiada de Cristovam. Uma figura absolutamente deslocada numa colônia austríaca, empenhada em promover a separação de São Paulo mais a região Sul do resto do Brasil.

A relação de representação de Cristovam, negro, idoso, “nortista”, como um bovino, que, uma vez velho, “merece ser sacrificado”, é significativa e merece atenção como ilustração do Brasil atual, no qual, numa pichação, o número ‘17’ parece igualmente ofensivo como qualquer palavra de baixo calão.

A alegoria da folclórica fantasia e da arma (uma zagaia) que a casa em que mora vai lhe revelando é também emblemática. As peças chegam como instrumentos que irão ajudá-lo a se defender e (o que é igual) a defender sua própria cultura/identidade naquele ambiente hostil. O irônico e esclarecedor é que o Cristovam bovino e ignorante, ainda que assuste, não terá êxito nem contra os algozes, conservadores e xenófobos, e nem com aquela que lhe oferece conforto amoroso. A saída, indica Casa…, talvez esteja em outro caminho.

Sobradinho (Bra., 2020), de Marília Hughes e Cláudio Marques. 70 min. Livre. Mostra Brasil (acessível pela plataforma Sesc Digital, clique aqui). O que nos faz admirar os artistas? Entre várias respostas, a sua capacidade de perceber a beleza que reside em pequenos detalhes e amplificá-la a ponto de ficar evidente e, ainda assim, preservar a sua sutileza. Neste documentário, Hughes e Marques (de Depois da chuva, 2013) olham para a solitária Dona Pequenita (Maria do Rosário). Uma sexagenária residente (a única) que permaneceu numa região alagada nos anos 1970 pelo governo militar para a construção de uma barragem e uma hidrelétrica em Sobradinho (Bahia). Com o projeto, quatro municípios e dezenas de vilas foram submersas, e 73 mil pessoas foram obrigadas a se deslocarem dali.

Sobradinho completa uma trilogia iniciada pelo casal de realizadores com o curta-metragem Desterro (2012) e o longa de ficção A cidade do futuro (2016). No filme que é lançado nesta edição da Mostra, as questões postas em Desterro por Pequenita e Thereza Batalha (uma das assistentes sociais que mediaram a mudança das famílias na década de 1970) ganham maior desenvolvimento.

Desta vez, Hughes e Marques tomam de auxílio, para melhor ilustrar o contexto, um provocador material de arquivos: cinejornais da época, produzidos pelo governo militar para publicizar o empreendimento autoritário; imagens em Super-8 feitas por Batalha; fotos da época feitas por Fátima Massimo (outra assistente presente no filme); e trechos da telenovela Fogo sobre terra (1976), de Janete Clair.

Dona Pequenita (d) em cena de “Sobradinho”

Fogo sobre terra colocava em primeiro plano exatamente a construção desenfreada de hidrelétricas pelo país, mas sem que houvesse um diálogo horizontal entre autoridades e a população afetada pelas obras.

Sobradinho, curiosamente, tornou-se um filme de época, por chegar ao público em 2020, tendo suas imagens sido captadas entre 2006 e 2010 (e sendo finalizado em 2019). A chegada tardia ao público, entretanto, não se apresenta como datada. Pelo contrário. Observar a obra de Clair inserida naquele contexto é interessante não apenas por vermos um produto televisivo de uma emissora simpática ao então governo instalado no País, mas também por percebermos (com olhos de 2020) uma Regina Duarte, já em 1976, no papel da personagem que tenta persuadir o personagem de Juca de Oliveira a fazer o que ele não quer. Ele, como a Dona Pequenita da vida real, não queria ceder às imposições do governo militar para deixar a sua terra.

Um último ponto sobre Sobradinho está no seu cuidadoso desenho de som feito por Edson Secco cobrindo as fotografias e as imagens em Super-8 da época. Num belo casamento entre sequenciamento de imagens com desenho de som, Sobradinho revela-se melancólico em tudo o que pode haver disso numa história de desterrados.

Ao final do filme, a sutileza da beleza que comentamos no início do texto transparece ampliada pela autenticidade de Dona Pequenita. Ela, alegre em seu habitat natural, invoca alegria por memórias felizes, em forma de música. E Marília Hughes e Cláudio Marques entenderam que é assim que tem de ser.

Serviço – Sobradinho estará disponível gratuitamente, a partir das 20h dessa segunda-feira (26), para ver na plataforma do SescDigital. Pode ser visto até o final da Mostra de SP (4/11), mas fique atento. Os títulos têm limite de mil a duas mil visualizações.

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