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Festivais

9º Olhar (2020) – Los Lobos

O estratégico medo da dor

Por Cléber Eduardo | 11.10.2020 (domingo)

Em um número da revista Espirit, em 1949, o crítico francês André Bazin, no início de seu artigo sobre Alemanha ano zero (1948), do italiano  Roberto Rossellini, constata haver uma tendência histórica no cinema: as  representações de crianças na maioria dos filmes tende a criar uma conexão entre as personagens e as pessoas adultas sentadas diante da tela. As expressões das crianças, portanto, precisam ser acessíveis a nosso conhecimento. Rossellini, para o mesmo Bazin, vai na contramão. Não tem medo de lidar com o mistério de gestos e expressões inacessíveis à nos.

A lembrança de Bazin e de Alemanha ano zero, rigorosamente, é somente circunstancial, motivada por mais uma revisão do filme e releitura do texto para uma aula, poucas horas antes de ver Los lobos, do mexicano Samuel Kishi, mas a circunstância parece bem vinda. Kishi filma, afinal, crianças. E as filma sem nenhum mistério, sem nenhuma zona inacessível, talvez mesmo sem senso de dramaturgia. procurando nelas apenas a matéria humana de um relato de ações, que, apesar de conter situações de uma precariedade material, se não justaposta, ao menos aproximável de Alemanha ano zero, procura a todo custo anestesiar as dores em jogo.

Los lobos aporta na versão online do 9º Olhar de Cinema com o currículo de prêmios e participações em diversos festivais internacionais, entre os quais o de Berlim, Fribourg e Havana, com seus perfis de programação no mínimo distintos. Parece ter acessado no circuito internacional lugar almejado por grande quantidade de cineastas e filmes da América Latina. Não é a intenção dar de ombros para essa repercussão e desconsiderar a capacidade de aprovação do longa-metragem. Os fatos são os fatos. No entanto, o olhar crítico, heterogêneo por princípio, não se dobra aos fatos. Porque os fatos são os efeitos empíricos dos filmes, seus prêmios, bilheterias e outros negócios, mas nada tem a ver com os filmes em si e com nossa relação com eles. Portanto, deixemos, momentaneamente, as láureas e louros

Los lobos prioriza a informação narrativa, não a expressão dramática da experiência de seus personagens, uma mãe e dois meninos recém chegados do México nos EUA, que tentam sobreviver como imigrantes. Isso significa que, certamente, a montagem (não sei se também o roteiro) soma relatos de ações, situações, cenas e sequências de modo a nos informar sobre o que acontece com aquelas pessoas, mas não se pauta, em sua forma cênica e narrativa, pelo que sentem essas pessoas, por como experimentam as circunstâncias.

Em suma, o que vivem mãe e filhos não afeta a forma do filme.

Exemplo 1: Mãe e filhos chegam, batem na porta de um chinês para alugar um muquifo a 500 dólares a mensalidade.  Não vemos ela recusar a possibilidade em cena. Há um corte para ela em outro imóvel e em outro, outro e mais outro, com fotos de quem fala os preços e as condições do imóvel, sucessivamente, colocando essa informação serializada no lugar de possíveis cenas nas quais pudéssemos ver e ouvir a experiência de mãe e filhos em lidar com mais um imóvel, com mais uma frustração. A experiência não importa, somente a informação: os demais imóveis e preços são piores que o primeiro imóvel do chinês.

Exemplo 2: As crianças passam horas sozinhas, uma com a outra, a princípio trancadas no muquifo de 500 dólares, mas isso de novo é mais importante como informação (elas estão sozinhas, entediadas, mal cuidadas e tentam passar o tempo com algumas brincadeiras) Informação sobre suas vidas em geral, mas não como momentos específicos de suas vidas e de seus sentimentos

Há, é verdade, um grau considerável de percepção pessoal (minha) em relação a encarar a dinâmica dessas imagens de situações densas e dramáticas em potencial como informações somente e não como expressões do que se passa com personagens e por personagens.  Eu vejo o que acontece com essas pessoas, mas eu não as sinto em suas experiências. Tenho a impressão de que Los lobos desvia-se da dor, do sofrimento e das reverberações do drama familiar. O estratégico medo da dor. A anestesia, tanto quanto o escândalo, é motivo de prêmios.

Nota do editor: Los lobos pode ser visto pela plataforma streaming do 9º Olhar de Cinema nesta terça-feira (13), a partir das 6h (com acesso possível até às 5h59 do dia seguinte). Clique aqui.

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