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Críticas

Cine Marrocos

O poético do cinema, a verdade de seus personagens e as complicações da realidade a partir de um endereço

Por Luiz Joaquim | 29.05.2021 (sábado)

Não é um filme sobre cinema o Cine Marrocos (Bra., 2018), dirigido por Ricardo Calil, que estreia na próxima quinta-feira (3/6), mas… é, também.

Não é porque a essência que fica conosco, uma vez encerrado este cativante documentário, é a que emana de seus personagens. Está na dignidade que Calil e sua equipe resgatam aos sem-teto que vivem no gigantesco e histórico Cine Marrocos, na capital paulista, fechado desde os anos 1990. Corrigindo: O filme não resgata, mas sim abre a lente para uma dignidade que nunca deixou Joseph, Volusia, Tatiane, Fagner, Dulce, Panda, Yamaya e Valter.

Agora, Cine Marrocos é também um filme sobre cinema porque, desde o título, e não apenas por ele, situa-se num espaço inaugurado em 1951, na rua Conselheiro Crispiano, centro de São Paulo, que antes inspirava alto glamour, frequentado inclusive por estrelas internacionais.

Com a sua imponência, três anos após a inauguração – cujo slogan na época o anunciava como “o melhor e o mais luxuoso da América do Sul” -, o Cine Marrocos foi palco do primeiro festival internacional de cinema realizado no Brasil. E é com imagens de arquivo sobre aquele evento que Calil ilustra a estatura de luxo daquele palácio numa outra era (confira aqui).

A propósito, impressiona a boa solução que Calil e a montadora Jordana Berg (antiga colaboradora de Eduardo Coutinho) dão para esse prólogo no filme. Em pouco minutos já compreendemos a dimensão da ruína onde estamos hoje, conhecemos um personagem simbólico para todo o grupo que virá a ser apresentado dali por diante – no caso, o cabeludo e eloquente Valter (na foto acima)–, e também vemos um desfile de celebridades passando por ali (nas imagens de arquivo), numa outra época, tão reveladora sobre o tempo passado quanto sobre o tempo presente.

Logo de início também fica claro qual o dispositivo criativo que foi pensando como ponto de partida para essa obra: reencenar naquele lugar, com os ocupantes do Marrocos atuando, sequências de filmes que exibiram ali no festival de 1954, entre os quais: O crepúsculo dos deuses, de Billy Wilder, A grande ilusão, de Jean Renoir, Júlio César, de Joseph L. Mankiewicz, Noites de circo, de Ingmar Bergman, e Pão, amor e fantasia, de Luigi Comencini.

Volusia (ao centro) interpreta personagem que foi de Gloria Swanson em “Crepúsculo dos Deuses”.

Nesse sentido, ainda que as várias sequências de preparação dada por Georgina Castro e Ivo Muller aos ocupantes do Marrocos (com gente de várias nacionalidades) para que atuassem nas encenações possam soar enfadonhas para algum espectador, o resultado desse trabalho – a reencenação em si – revela-se delicioso. E, o mais importante aqui, realçando a dignidade daqueles personagens tão sofridos na vida real e que, agora, nos são apresentados pela perspectiva do cinema clássico.

Dá quase para visualizar o sorriso de Calil e de Jordana enquanto brincavam na edição, alternando cenas dos filmes originais com as cenas criadas.

Calil, que passou por uma carreira de respeitado crítico de cinema, entende o poder que essa força pode conter. E o intento e o desafio que impôs a si, aqui, foram belamente logrados.

Ainda no campo da edição, é bom o corte seco trazendo a realidade do mundo externo para se interpor na narrativa do delicado e respeitoso mundo da arte sendo desenhado com os ocupantes no interior do Marrocos. Sem aviso prévio, as cores brilhantes do noticiário da tevê prenunciam que o destino daquelas pessoas terá um desdobramento infeliz. Antes disso, o estranhamento causado pela inusitada inserção do depoimento do líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MSTS) declarando seu apoio à eleição de Aécio Neves para a presidência da República (a equipe do filme esteve no cinema pela primeira vez em 2015) é um muito bom indício de que alguma coisa não estava se encaixando ali.

Não foi, portanto, e logicamente, à toa a premiação de Cine Marrocos como melhor filme do 24º É tudo verdade, em 2019. Com a sua costura entre o poético do cinema, a verdade de seus personagens e as insondáveis complicações da realidade apresentada, Cine Marrocos nos comove com competência nessas três instâncias.

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