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Críticas

Meu Ano em Nova York

Sobre sonhos, literatura e a realidade.

Por Luiz Joaquim | 25.09.2021 (sábado)

Chegou algo delicado, bonito e pouco alardeado na Netflix: A produção canadense Meu ano em Nova York (May Sallinger Year, Can./Irl., 2020), que está disponível pelo canal de streaming desde o último dia 15. Dirigido pelo canadense Philippe Falardeau (de A boa mentira), o filme abriu o Festival de Berlim no ano passado.

Além desse chamariz – ser a obra que teve a honra de abrir um festival tão importante –, outros dois atrativos atingem de cara aqueles que descobrem sobre o que o filme está interessado em proporcionar.

O primeiro atrativo vem a ser a experiência de Joanna (Margaret Qualley. Leia o que falamos da atriz em Era uma vez em… Hollywood). Estamos em 1995 e ela é uma jovem interiorana aspirante a escritora que começa a trabalhar na Big Apple numa agência literária de nomes incontornáveis da literatura inglesa, entre eles J. D. Sallinger, ou apenas Jerry, para a durona Margaret (Sigourney Weaver), dona da agência.

Alias, aí está o segundo atrativo para quem pouco ou nada sabe sobre Meu ano em Nova York: reencontrar Weaver em uma atuação segura, leve e divertida.

Entretanto, o brilho intenso aqui está mesmo em Qualley (de 27 anos, filha de Andie MacDowell). Se naquele pequeno papel, como Pussycat, no filme de Quentin Tarantino, a atriz já havia roubado a cena, neste trabalho que funciona inteiramente no entorno de sua personagem, Qualley brilha intensamente.

Um brilho alcançado por sutilezas desenvolvidas principalmente pelo seu rosto, para criar uma Joanna que alterna contenção e entusiasmo, passando de uma postura a outra com tranquilidade.

Margaret Qualley como Joanna em “Meu Ano em Nova York”

Nesse sentido, a trajetória de Joanna é cativante, particularmente ao espectador que encara na literatura um sentido ou uma salvação para a vida. Cativante porque, assim como centenas de milhares de jovens que um dia sonharam viver da alegria e da tristeza de sua capacidade literária criativa, o que vemos em Joanna é exatamente o desabrochar da melancolia pela descoberta de que o mercado literário é algo frio, bem distante do aquecido e acolhedor espaço da criação literária.

Entre três ou quatro conflitos dissolvidos no filme (e isso pode ser visto como um problema por alguns) é essa descoberta de Joanna que age como força-motriz em Meu ano… No enredo ela se configura em uma das funções da empregada na agência: Responder as dezenas de cartas que chegam semanalmente ali, remetidas por fãs de O apanhador no campo de centeio, a mais icônica criação de Sallinger (1919-2010).

Na verdade, a resposta que ela envia, por ordem da agência, é padronizada, mecanicamente informando ao remetente que o recluso Sallinger não lê cartas de seus fãs desde os anos 1960. Por enxergar-se nesses apaixonados remetentes, ainda que a própria Joanna nunca tenha lido nada de Sallinger (o que é outra ótima sacada desse roteiro adaptado do homônimo romance autobiográfico de Joanna Smith Rakoff), a jovem decide quebrar essa regra.

É bacana também ver a opção de Meu ano… materializar plasticamente a interação de Joanna com esses remetentes. É uma opção não tão nova assim no cinema, é verdade (uma primeira lembrança aqui é O Magnífico, 1973, de Philippe de Broca), mas há uma inteligência narrativa aqui que cativa.

Além disso, há um quê nostálgico nesse filme – afinal estamos no passado de 26 anos atrás. Tempo não tão perto, mas não tão distante assim a ponto de não entendermos como era a dinâmica da transição tecnológica da época. E Falardeau aproveita isso muito bem.

No meio de tudo isso há ainda espaço para um romance atrapalhado de Joanna com outro aspirante a escritor, só que xiita e dono de uma autoconfiança patética – que aqui tem também a função de contrastar com a centralidade que a moça carrega consigo em suas dúvidas sobre seu talento.

É bom também ver Falardeau administrar com carinho um mosaico de personagens tocado por um elenco afiado, todos vivendo, cada um a seu modo, em torno da literatura.

Literatura: um feitiço competente em enlouquecer seus praticantes, e com a anuência de todos aqueles que a amam.

Em tempo: O filme surge com o título UM ano em Nova York em algumas mídias, mas está registrado no Netflix como MEU ano em Nova York.

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