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Festivais

45ª Mostra SP (2021) – Memória

Apichatpong e o contrabando de memórias

Por Ivonete Pinto | 31.10.2021 (domingo)

Apichatpong Weerasethakul faz a proeza de transferir seu mundo fantástico do Extremo Oriente para a Colômbia, sem apelar para hermetismos.

Seu universo de crenças populares fincadas na religião budista é pleno de códigos muitos particulares, no entanto, neste Memória (2021) ele nos diz que pode haver uma universalidade espiritual, que em campos ocidentais pode ter o respaldo de Jung e seus arquétipos, ou de Kardec e seus espíritos. Pode até ser uma atriz como Tilda Swinton que encarna a linguagem de Apichatpong e nos convence que as vidas passadas, a natureza, incluindo os macacos, são trazidos de contrabando para a Colômbia, onde se passa Memória.  Um país, por sinal,  cuja paisagem deslumbrante é explorada pelo diretor, que viajou para lá alguma vezes, encantado com as paisagens ainda primitivas.

Tilda Swinton, com sua persona que impregna qualquer filme, qualquer enredo, aqui é o cavalo do tailandês. Sua personagem, Jessica Holland,  mora temporariamente em Medellin e viaja para Bogotá para visitar a irmã (Karen Holland), que está num hospital e que perdeu a memória. Claro que este início já nos remete a Cemitério de esplendor (2015) e seu cenário hospitalar. Mas ao contrário dali, em que os personagens estavam sempre dormindo, Jessica nunca dorme. Além deste distúrbio, ou por causa dele, sofre uma síndrome que lhe faz ouvir sons.

O som é o grande leitmotif do filme, tudo gira em torno dele e o conselho mais honesto que se pode dar ao leitor que ainda não viu Memória, é que o faça em uma sala de cinema, de preferência com um som impecável. Se a única alternativa for via Mubi, onde o título estreia ano que vem, que ao menos use fones de ouvido.

Como ponto de partida, o som está ligado a uma memória de Apichatpong, que teria ouvido um estrondo em sua infância, algo semelhante a uma bomba que explodia em sua cabeça. Ele transforma esta lembrança em muitas camadas de sons,  que expressam o que passa na cabeça de Jessica Holland. Ela ouve repetidamente o intenso ruído de um estouro, uma batida metálica, e tenta descrever o que ouve para um jovem editor de som para que ele possa produzir mais ou menos o que ela ouve. Mais tarde, Jessica consulta  uma médica (Constanza Gutierrez), lhe conta que não dorme nunca, e recebe dela orientações bizarras, motivo de muitas risadas da plateia. O lado cômico de Apichatpong nos surpreende.

Como também, a bem da verdade, nos surpreende a capacidade que ele teve de migrar seu universo para a Colômbia. Ele não se apropria de chaves da cultura latina, não opera uma tradução dos elementos extraterrenos. Ele cria outros, como a própria origem do som ouvido por Jessica, que ao final do filme se revela e é um impacto e tanto. Precisamos, claro, invocar Coleridge e a suspensão da descrença. Mas acostumados que estamos  com a liberdade criativa do diretor de Tio Boonme, que pode recordar suas vidas passadas (2010), embarcamos em sua nave sem pestanejar. Seu grande trunfo é Tilda Swinton, produtora executiva do filme, que fala em espanhol boa parte do tempo. Os vários e fascinantes planos-sequência em que ela se expressa na língua que não é sua, nem do diretor, representam um tour de force dos dois. Impressiona o texto, a performance, a posição da câmera, sempre meio afastada como em reverência à grande atriz. Já no início do filme temos este procedimento de Apichatpong, que enquadra Tilda Swinton de longe, num claro-escuro, e só depois de uns bons 30 minutos de filme é que vemos seu rosto com maior nitidez.

A posição da câmera sempre meio afastada como em reverência Tilda Swinton

É o tempo também em que persiste nossa desconfiança de que Apichatpong poderia se dar mal filmando em outra geografia, em outra cultura e com uma equipe técnica e artística que não é a sua. Mas ele dribla os mais céticos e demonstra como que uma tese: a de que seus filmes não eram circunscritos à cultura local. Tirando uma que outra prática mais específica, a dimensão sensorial de seu cinema pode estar em toda parte, desde que estejamos dispostos a entrar nela.

A experiência de ver Memória no cinema, com uma plateia respeitosa e atenta, faz com que as mais de duas horas passem sem o relógio se dar conta.

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