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Clássicos

Apenas Uma Mulher (1967)

Um ponto de inflexão, que veio do Canadá, nas paixões proibidas do cinema mainstream

Por Luiz Joaquim | 21.11.2021 (domingo)

O que há de encantamento nessa máquina do tempo chamada cinema, que nos tira de nossa época e lugar com tanta competência? Infinitas e eternas teorias já trazem lindas e sofisticadas respostas. Mas elas não atendem. Não totalmente. Não suficientemente. E, com o volume de filmes do passado nos cercando cada vez mais, só se reforça a sensação de que uma vida apenas não basta. É inumano assimilar tanta beleza produzida ao longo de quase 130 anos.

Ainda que esbarremos num filme de mediana (não extraordinária, não ordinária, mas mediana) pretensão cinematográfica, como é o canadense Apenas uma mulher (The fox, Can., 1967), de Mark Rydell, não dá para ficar quieto. É claro que a produção tem seus méritos, mas o difícil aqui é desmontar a torre que ergue a certeza das boas e más qualidades do filme para enxergarmos com clareza o que a distância temporal fez dessa obra razoavelmente esquecida pelo mundo.

Sem um diretor de nome – Apenas uma mulher foi o primeiro longa-metragem dirigido para o cinema por Rydell, que posteriormente ganharia prestígio por A rosa (1979) e Num lago dourado (1981) –, a produção angariou, em seu tempo, uma boa atenção na mídia, além de cair no gosto popular. No Brasil, estreou apenas em 1969, e veio embalada pela indicação ao Globo de Ouro de direção para Rydell, e pela indicação ao Oscar, naquele ano, para a canção tema composta por Lalo Schifrin (o mesmo que criou o tema de Missão Impossível). A propósito, é certo que a linda trilha sonora seja mais lembrada do que o próprio filme (escute aqui).

A favor do filme, o prestígio de ser uma adaptação de uma novela de D. H. Lawrence, escrita pelo romancista em 1923, cinco anos antes daquela que é, talvez, sua mais celebrada obra, O amante de Lady Chatterley; e, claro, havia a presença de Sandy Dennis no elenco, que brilhou para o mundo em 1966 por Quem tem medo de Virginia Woof?,  trabalho pelo qual havia recebido o Oscar de coadjuvante em 1967, ano de estreia de Apenas uma mulher no Canadá.

Ainda no elenco está o ator Keir Dullea, que só viria a ser mundialmente reconhecido no cinema um ano depois, como o rosto humano que encara Hal em 2001: Uma odisseia no espaço (1968). A terceira e principal figura da trama em Apenas uma mulher foi vivida pela inglesa Anne Heywood, cuja habitual presença nos filmes britânicos dos 1950 e 1960 figurava em pequenos papeis, habitualmente como ‘a boa mocinha’.

Dullea, Heywood e Sandy em cena de “Apenas Uma Mulher”

Mas há, acima de tudo, um outro elemento que fez da estreia de Rydell uma curiosidade em todos os lugares onde exibiu. Mesmo sendo fiel às palavras de D. H. Lawrence, escritas quatro décadas antes, a audaciosa adaptação e adequação cinematográfica aos libertários anos 1960 tornou o filme uma das obras mais impactantes, para a época, ao mostrar cenas amorosas de uma paixão lésbica no contexto mainstream cinematográfico. Uma, talvez, referência comparativa, em termos de impacto similar no universo da homossexualidade masculina, pode ser aquilo que causou O segredo de Brokeback Mountain quase quatro décadas depois de Apenas uma mulher.

No dia da estreia, no Rio de Janeiro, em 1969, o tumulto foi tão grande na fila do cinema para ver Apenas uma mulher que um reforço policial foi solicitado para manter a ordem. No Recife, o filme ficou em cartaz por quase todo o ano de 1970.

Still promocional de “Apenas Uma Mulher”

APENAS UMA MULHER – E o frisson em torno do filme não poderia ser diferente. Seu material de divulgação, na verdade, sugestionava mais calor que o próprio filme oferecia como, por exemplo, o still com Heywood sobre Sandy Dennis, beijando-a na boca; ou a que uma ilustração remetia a cena da masturbação de Heywood diante do espelho.

Tudo bem que as imagens não mentiam, e o que ali estava era o que se via na tela do cinema. Havia, porém, o contexto dramático que, para além dos instantes plasticamente sexuais (e eles se resumem a três), dava à história entre March (Heywood) e Jill (Sandy) um peso muito mais melancólico, e mesmo condenatório, do amor entre as duas.

Material de divulgação de “Apenas Uma Mulher”

No enredo, ambas tentam administrar, solitárias, a pequena fazenda de Sandy durante um rigoroso inverno canadense (perdoem a redundância). Um dos problemas das duas amigas é uma raposa que sempre aparece por ali para fazer estragos no galinheiro. March até tenta mata-la à espingarda, mas não consegue. Primeiro por inaptidão com a arma, depois por um bloqueio inconsciente.

É interessante observar aqui como a raposa vai se configurando como uma alegoria da paixão de March por Jill (e, neste sentido, o título original – The fox – é absoluto). Por esse entendimento, nada mais coerente na impossibilidade de March em dar cabo da raposa.

No caso de Jill, temos o papel mais ingênuo do casal de amigas, enquanto que March mantém-se quieta e mais madura, na medida em que se resolve calada com os seus desejos secretos.

Embalado pela tocante música de Schifrin, Apenas uma mulher constrói sua história sem muitas revoluções visuais (o que seria fácil de se esperar, considerando a década que lhe deu origem). Mas, ao menos em um momento do filme, é possível dar de cara com um notável instante de inventividade estética por parte de Rydell.

Surge de uma brincadeira infantil na neve, entre as duas mulheres, pelo simples gesto de Jill tirar a neve dos lábios com a sua própria língua, desestruturando a amiga March. Representando o abalo emocional da última, a tela escurece inteiramente, depois avermelha, para depois vermos Jill numa sequência de imagens estáticas. É como se o tempo, naquele instante, corresse noutro ritmo para a então desconcertada March, e é assim que o enxergamos pelo filme de Rydell.

A chegada e a instalação de um estranho, Paul (Dullea), na casa logicamente acontece para quebrar o frágil balanço entre as amigas. Dullea aparece aqui com uma performance digna de uma máquina do filme 2001. Suas falas soam mecânicas, algumas vezes irritantemente frias, sugerindo uma performance ruim. Mas, ao mesmo tempo, a leitura da inadequação de seu personagem, como figura invasiva entre o amor das duas mulheres, sugere que essa sua performance faça todo o sentido para aumentar o contraste com o que há de humanamente conflituoso no personagem interpretado por Heywood.

Vale dizer que é Paul que dá fim àquilo que March não consegue. A simbologia da morte da raposa não fica distante de uma representação da condenação da paixão homossexual entre March e Jill.

Enfim, Apenas uma mulher nos dá algumas boas camadas de leituras, que, arriscamos dizer, o distanciamento temporal parece ajudar. Merecia novos visionamentos e novas reflexões, esse filme.

P.S. – Duas outras obras para acompanhar uma sessão de Apenas uma mulher: (a) Nasci para ser mulher (1972), de John Dexter, com a mesma Anne Heywood no elenco, sobre um jovem de vinte anos, filho de uma militar, que não quer mais viver como um homem; e (b) Infâmia (1961), de William Wyler, sobre a histórias das amigas Karen (Audrey Hepburn) e Martha (Shirley MacLaine) que administram um internato e passam a sofre com um boato espalhado por uma de suas estudantes, a de que elas vivem um romance secreto.

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