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Reportagens

O que é mesmo esse novíssimo cinema brasileiro?

Reportagem de 2011 para a revista Continente (Recife) sobre uma pergunta sem resposta

Por Luiz Joaquim | 21.11.2021 (domingo)

– na foto acima, Felipe Bragança ao microfone, ao fundo Karin Ainouz, na 13° Mostra de Tiradentes (2010) / Crédito – Alexandre C. Mota / Universo Produção / divulgação

Em 19 de outubro de 2010, quando o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais tradicional do País, em sua 43ª edição, anunciou a seleção de longas-metragens em competição, alguma coisa sinalizava diferente. Era exatamente a relação de nomes dos diretores que iriam disputar o troféu Candango. Dos seis concorrentes, apenas um deles, João Jardim, era razoavelmente conhecido pelo público por trabalhos anteriores (Janela da alma, 2002; Pro dia nascer feliz, 2005; Lixo extraordinário, 2010), e isso exatamente por eles terem sido projetados no circuito de salas de cinema.

Seu novo filme no Festival de Brasília, Amor? (já lançado comercialmente dia 15 de abril), também era o único com caras familiares no elenco: Lilia Cabral, Eduardo Moskovis, Fabiula Nascimento, Ângelo Antônio, Julia Lemmertz. Não à toa, a sessão que o apresentou no Festival foi a que registrou o maior número de pessoas na plateia, além de ter angariado, ao final do evento, o prêmio do público.

Outro nome na lista com um histórico também considerável, tendo já circulado em festivais internacionais com documentários – mas ainda assim estranho ao espectador comum – era o de Eryk Rocha.  Tenso em Brasília, o diretor de 32 anos paria seu primeiro longa-metragem em ficção, Transeunte.

 Os outros nomes na disputa eram o dos cariocas Felipe Bragança e Marina Meliande (por A alegria), dos mineiros Sérgio Borges (por O céu sobre os ombros) e Tiago Mata Machado (por Os residentes), e do radicado em Pernambuco, Marcelo Lordello (por Vigias). Cinco ilustres desconhecidos, em torno dos 30 anos de idade, que projetavam suas primeiras experiências num longa-metragem (com exceção de Marina e Felipe) logo no mais emblemático festival de cinema do Brasil.

Esta exposição chamou a atenção da mídia mais tradicional para uma geração de cineastas que vem produzindo incessantemente, há cerca de dez anos, um cinema cujo maior comprometimento é com suas inquietações com o mundo contemporâneo e com as próprias possibilidades de linguagem que cinema oferece. Sobre Vigias, Lordello afirma: “É fruto das reflexões de uma pessoa comum que sente seu entorno se modificar, de um habitante que assiste a cidade desfigurar. Que é contra certas imposições de formas de vida desconsiderando as necessidades humanas”.

O diretor de fotografia de Vigias, o cearense Ivo Lopes Araújo, reforça: “Sempre vou aberto a cada novo trabalho que assumo, e me abstenho de questões políticas ou estéticas. O que importa ali é a construção do filme, e essa construção é sempre fruto de um belo encontro”. Ele mesmo, transitando com facilidade, mas não por um planejamento prévio, terminou por tornar-se uma espécie de aglutinador nacional dessa geração, mais marcadamente ativa no Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Geras, Ceará e um pouco em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Talvez o maior reflexo disso tenha se mostrado na mais recente edição (a 14ª) da Mostra de Cinema de Tiradentes, que acontece anualmente em janeiro na histórica cidade mineira.

Lá, Ivo era responsável pela assinatura da fotografia de quatro longas em exibição. Além de Vigias e O Céu sobre os ombros, ele fazia parte da equipe do pernambucano Avenida brasília formosa (2010), de Gabriel Mascaro, e do seu conterrâneo, Os monstros (2010), dirigido e atuado conjuntamente por Luiz e Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes, integrantes do coletivo Alumbramento.

Nos pontos de interseção formal presente em O céu sobre os ombros Avenida brasília formosa, cujos, em ambos filmes, os personagens são não-atores profissionais numa espécie de performance do cotidiano de suas próprias vidas, Ivo foi figura determinante nos resultados alcançados. “Assim que terminou de gravar comigo, Ivo começou a rodar com Gabriel [Mascaro]; chegou lá contaminado e ajudou na construção do filme pernambucano, assim como no meu”, revela Sérgio Borges. O resulto, diz o cineasta mineiro, é que esses filmes conversam entre si. Uma “conversa” que gerou até uma análise pelo artigo Construção da cidade, do pesquisador Cezar Migliorin.

E, ainda sobre Tiradentes, registra-se que a mostra vem apresentando-se não penas como o principal palco de exibição, encontro e discussão intelectual da obra dessa nova geração, que brilhou novembro em Brasília, como também o palco central onde se travam os primeiros contatos entre eles que, por sua vez, geram novas ideias, parcerias e produções. Todos os realizadores, inclusive, concordam que o evento é/foi uma peça fundamental para aproximar o público comum a essas obras e chamar a atenção da grande mídia sobre eles.

Um de seus curadores, desde 2007, o crítico de cinema e também realizador Eduardo Valente (responsável pela seleção de curtas-metragens, ao lado do também crítico e cineasta Cléber Eduardo, que elege os longas) diz que em 2011 o programa Aurora, responsável por apresentar jovens diretores no início de sua trajetória, ganhou tratamento no jornal O Globo igual ao dado a grandes competições brasileiras, como Gramado e Brasília.

Eduardo Valente na 14ª Mostra de Tiradentes, (2011) / Crédito – Paulo Filho / Universo Produção / divulgação

“Tinhamos meia página com foto de cada concorrente. Isso foi conquistado ano a ano, em parte com muita sabedoria do Cléber e do pessoal da Universo [Produção] em ir vendo o que funcionava e mantendo”, conta Valente, e continua: “mas também os filmes permitiram que essa curadoria tivesse consistência e montasse um programa forte e coerente”.

Para Gabriel Mascaro, “Tiradentes é um espaço que espero o ano inteiro para estar lá. É quando nos surpreendemos ao encontrar outras obras com algumas semelhanças de propostas e participamos de discussões profundas, que ultrapassam questões estéticas ou temáticas”, comemora. Felipe Bragança lembra que a mostra “teve o mérito nos últimos cinco anos de procurar os filmes por aspectos estéticos acima de tudo e não pelo potencial como produto de consumo. Encontrou coisas interessantes de novos diretores, com pequenas produções em termos de orçamento, olhando essas produções sem preconceitos”.

Ivo Lopes – que também fotografou o novo longa-metragem de Marcelo Lordello, Eles voltam – é ainda mais incisivo sobre o assunto. “Hoje Tiradentes é fundamental. Algumas coisas precisam ser inventadas e Cléber e Valente bolaram uma vitrine inteligente, antenada com o mundo, porque eles vêem o que acontece no mundo, da mesma forma que nós mesmos vemos”. E alfineta: “Por que será que curadores de Cannes e Roterdã hoje vão a Tiradentes? Porque é uma mostra que sabe onde quer estar, e já está chegando lá, ao contrário do Cine Ceará, com 21 anos, e o Cine-PE  com 15, que são festivais feudais”.

O fotógrafo contextualiza que hoje não é preciso esperar três anos para ver, por exemplo, um novo filme filipino. É só acessá-lo no computador. E diz que esse cinema feito por estes jovens realizadores brasileiros é um reflexo mundial de uma juventude que observa as mudanças ao seu redor na mesma urgência em que elas acontecem. “As cidades crescem e as relações mudam muito rápido. É como uma grande erupção, de onde sai pedra para todos os lados”, vaticina.

Ainda que concorde que os filmes dialogam com o estado das coisas no momento em que vivem, Gabriel Mascaro alerta que isso não pode ser entendido como um “fetiche geracional”, e Bragança reforça, “as características que marcam esse cinema não podem se tornar um clichê do cinema-jovem-filme-barato”.

O diretor de A alegria (exibido na Quinzena dos Realizadores, em Cannes 2010) e A Fuga da Mulher Gorila (vencedor da mostra Aurora em Tiradentes 2009) esclarece que há também, em comum, um diálogo cinéfilo com clássicos do cinema universal, em particular dos anos 1960 e 1970, misturado a uma digestão de aspectos do dito ‘cinema contemporâneo’. “Há ainda um tom de fábula, de sonho, que chamam a atenção num panorama do começo dos anos 2000. Lá, as imagens do cinema nacional costumavam ser associadas ao desvelamento do ‘real’ brasileiro. Acho que nossos filmes driblam, enfrentam ou passam ao largo disso”, pondera.

Sérgio Borges, integrante do coletivo Têia, em Minas Gerais, lembra que sua geração foi formada com a tecnologia digital, bem diferente das anteriores. “Nos editamos nossos filmes em casa, todos os integrantes da equipe dirigem, todos produzem e é assim que vai se formando essa construção criativa”.

“NOVÍSSIMO CINEMA BRASILERO” – Com a crescente exposição dessas produções, surgem novas discussões e, com elas, chegam as polêmicas. Uma delas (leia a respeito na matéria vinculada abaixo) surgiu a partir de um texto do crítico Carlos Alberto Mattos publicado como resposta a um artigo escrito anteriormente pelo próprio Felipe Bragança, que é também um respeitado crítico cinematográfico.

Nesse contexto, um termo tomou força, supostamente designando o cinema desta nova geração: seria o “novíssimo cinema brasileiro”, que já era pronunciado nos debates promovidos entre a crítica, os realizadores e o público na 14° Mostra de Tiradentes.

Eduardo Valente explica que o termo não foi criado como definidor de uma geração. “Ele surgiu como nome de uma sessão de cinema mensal, que teve seis edições em um cinema aqui no Rio de Janeiro [o Cine Glória], cujo site ainda está no ar (clique aqui). A ideia nunca foi ser restritivo, mas sim de chamar a atenção de um panorama carioca bastante árido para alguns filmes que mal estava sendo exibido por aqui. No meio do tempo a sessão morreu porque a sala fechou meses para reforma e no retorno já não fazia sentido”.

Pouco tempo depois, a ideia, de certa forma, se transformou num evento chamado “Semana dos Realizadores”, coordenado por Valente e Lis Kogan, e que acontece desde 2009, dias antes do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, em setembro. “Ficávamos impressionados com a falta de espaço por aqui com uma série de filmes que admirávamos e que até o Festival do Rio, com seu gigantismo [com mais de 300 filmes por edição] parecia não se interessar”, lembra o curador, ainda fazendo questão de reforçar: “Mas, de novo, a Semana também não se arvora o desejo de definir gerações nem nada assim”.

Essa redução do grupo ao termo “Novíssimos” é algo que também não agrada ao realizador mineiro Affonso Uchoa, diretor de Mulher à tarde (2010). “Se a única coisa que pudermos retirar desses filmes brasileiros recentes for a confirmação de certo clima e ambiente e estilo contemporâneo, ficamos muito restritos e os filmes morrem de inanição. Claro que se poderia falar, dentre outras coisas, do tempo distendido dos planos em A casa de Sandro (2009), Os Monstros e Mulher à tarde, mas acaba por ser pouco. Pois o importante seria pensar a que serve a distensão em cada um dos filmes; como esses tempos são articulados com relação ao que o filme pretende construir, e por aí vai”, analisa.

Gustavo Beck, diretor de A Casa de Sandro, acredita que ainda é prematuro para apontar semelhanças estéticas ou discursivas. Com relação a Os residentes (projetado também no programa ‘Fórum’ do 61° Festival de Berlim), por exemplo, Gustavo diz gostar da obra de Tiago Mata Machado “não por se aproximar dos demais filmes, mas pelo contrário. Acho que entre estes, ele é o filme que faz o caminho oposto de todos, que se constrói num espaço que não tem referência entre nós”.

Ainda assim, Gustavo reflete que, mesmo alguns destes filmes sendo, de certa forma, irmãos, eles “apresentam uma filiação completamente indefinida, e uma personalidade própria muito incisiva em alguns casos. Mas acho que de alguma maneira esses filmes estão se ajudando, se somatizando, construindo um pequeno recorte de um cinema nos dias de hoje”.

Já Valente pergunta-se se há realmente este ‘novíssimo cinema brasileiro’ “como grupo ou geração, ou proposta estética, ou o que for… Mas também acho que nos tempos de figuras como as do Cinema Novo, Cinema Marginal, Nouvelle Vague, etc., viviam dizendo que eles não existiam. Ou seja, existem coisas que realmente ultrapassam os desejos, interesses, domínio dos criadores no que se refere a como suas obras são recebidas, entendidas e historicizadas. E eu, particularmente, vivo tranquilo com isso”.

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Felipe Furtado na 14° Mostra de Tiradentes (2011) / Crédito – Paulo Filho / Universo Produção / divulgação

Matéria vinculada: Em questão: a crítica

Felipe Bragança é celebrado por suas análises fílmicas publicadas antes na revista eletrônica Contracampo e posteriormente na Cinética. Num segundo momento, tem sua carreira marcada pelas realizações que já somam a direção de três longas-metragens (dois – A fuga da mulher-gorila, 2009 e A alegria, 2010 – co assinados com Marina Meliande, e um – Desassossego, 2010 – fruto de um coletivo experimental). Em março, Felipe publicou na coluna Prosa e Verso, de O Globo, o artigo Meu último texto de cinema, que viria e originar uma saudável e comentada polêmica (no meio cinematográfico) entre outros olhares da crítica de cinema, pelas mãos de Carlos Alberto Matto e Filipe Furtado.

No texto de Bragança, ele relembrava o contexto do cinema brasileiro quando criou seus primeiros textos, em 2000, dizendo que “fora do Brasil, Walter Salles e Fernando Meirelles apareciam como os dois únicos do cinema brasileiro de ficção a conseguir uma aura em torno de seus filmes”, para na sequência anunciar que seu desejo “era que entre o humanismo polido de Salles e o espetáculo habilidoso de Meirelles pudesse emergir outra forma, uma derivação mais arriscada e afiada de cinema que nos ampliasse esteticamente o horizonte”.

Como exemplo, Felipe cita Abbas Kiarostami, Tsai Ming-Liang e Manoel de Oliveira como nomes obrigatórios de encantamento e fala do anseio de ver “aquelas questões cênicas, de luz, de tempo e de montagem ecoarem ou serem digeridas pelos longas realizados no Brasil”. Mas, desde 2006, diz o crítico, “aquela velha agenda da ‘renovação de linguagem’ do cinema brasileiro começou a sair da teoria da cinefilia alternativa e se expressar em filmes”.

Mais adiante, pondera: “Pela primeira vez em vinte anos talvez a crítica brasileira – a independente e a de grandes meios – tenha que se ver diante do desafio de não mais propor agendas geracionais no deserto, mas descer para acompanhar e comentar e destrinchar os filmes e suas interrelações geracionais sem a obsessiva fixação pelo ‘cinema contemporâneo’ internacional como único oásis no horizonte, ou nos anos 1970 como nosso maio de 1968”. Para daí constatar, “estamos diante de um processo de longa transformação, de reinvenção do cinema brasileiro – ainda que não se dê de maneira homogênea entre os diferentes realizadores (ou críticos) dessa ‘geração’”.

Uma semana depois, Carlos Alberto Mattos, em seu blog (“…rastros de carmattos”), publica Menos silêncio, por favor… pelo qual questiona com veemência não apenas os pontos postos por Bragança como a própria validade de alguns filmes dessa já famigerada “nova geração”.  Mattos diz que o artigo do colega pede para ser lido “como peça política de um movimento que se autointitula de ‘reinvenção do cinema brasileiro’”, e que apesar das “muitas novidades por aí, é necessário não confundir manifesto com panegíricos”.

Diz que Bragança, “para elevar os chamados (não por Felipe) novíssimos, é necessário rebaixar os que os antecedem”. Destaca que, exceto por certos trabalhos pernambucanos, pelos recentes longas do Alumbramento (Ceará) e alguns mineiros, “são poucos os filmes aptos a ultrapassar o filó de uma certa patota e a curiosidade prospectiva de alguns festivais internacionais”.

Lembra também a Mostra de Tiradentes como “frequentemente citada como ‘prova’ de sucesso… Mas, sem contar as comuns debandadas em meio à projeção, muita gente sai rindo dos filmes e fazendo comentários bem distantes do que os seus diretores gostariam de ouvir”.

E é duro ao descrever que “há uma síndrome de autocontentamento com o filme barato e sem rumo. Uma espécie de masturbação recíproca coletiva acompanha os intercâmbios de talentos entre grupos e estados da federação”. E que “as realizações dos críticos-cineastas, praticamente sem exceção, têm naufragado num misto de pretensão, infantilismo intelectual, umbiguismo cool e referencialismo blasé. Elas somam a um panorama de cinefilia e filosofia mal digeridas, transformadas em filmes abúlicos”.

Mais uma semana à frente, e o crítico Filipe Furtado relativiza os dois textos com o seu artigo É, acho que a publicidade venceu…, postado no blog (“Anotações de um cinéfilo”). Furtado chama de indulgente o artigo de Mattos, e de tão ideológico quanto é o de Bragança. Ele explica que se Bragança olha com desconfiança o deslumbramento com o “cinema contemporâneo”, o de Mattos mostra “uma certa fobia do mesmo”.

E diz, “O que [Mattos] sugere é que estes filmes do tal novíssimo cinema brasileiro foram até hoje festejados por uma suposta rede de proteção, seriam filmes intocáveis, em suma”; e resume assim: “O discurso pró-ordem estabelecida do Carlos Alberto Mattos e o discurso radical da Contracampo se encontram na mesma recusa aos “novíssimos”, vistos por sinal sobre o mesmo olhar generalizante”. Ao final, Furtado nos conclama a falarmos mais dos filmes e menos dos manifestos e contramanifestos.

 

Para ler mais:

Revista Cinética

Contracampo

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