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Jorge Sanjinés: cinema na periferia da periferia

Jorge Sanjines e um cinema na periferia da periferia da periferia.

Por Humberto Silva | 28.12.2021 (terça-feira)

– na imagem acima, Jorge Sanjinés (d) durantes as filmagens de A nação clandestina(1989)

Inundados pela vasta e poderosa produção cinematográfica hollywoodiana desde os primórdios da arte das imagens em movimento, temos os olhos viciados e pouco atentos para o resto do mundo. Sim, há circuitos alternativos “cult”, fora do eixo hegemônico – assim como o não desprezível mundo dos festivais em cantos distantes do mundo – em que diretores e cinematografias são vistos por aficionados, cinéfilos, especialistas com sensibilidade para uma experiência diferente da do mainstream. Com exceção da Argentina, Chile e México, no entanto, mesmo para estes o cinema latino-americano é lateral, ou quase inacessível. Isso tem mudado apenas recentemente, ao vermos por aqui produções da Colômbia, Venezuela, Uruguai como não se via décadas atrás. O cinema cubano é um caso à parte. De qualquer forma, nosso contato com o cinema boliviano é praticamente nulo. Filmes bolivianos realizados entre os anos de 1960 e 1980, então, são tão difíceis quanto imaginar uma fita da Ilha de Páscoa. Por isso, é mesmo possível perguntar se no circuito comercial brasileiro algum filme boliviano, mesmo em anos recentes, já foi exibido. Pois bem, é do cinema boliviano daquelas décadas que este texto vai tratar. Sabendo, claro, que com os recursos dos torrents nos dias de hoje ver uma película até da Ilha de Páscoa não é impossível. Assim, poremos em foco o cineasta boliviano Jorge Sanjines, nascido em 1936, que se mantém ativo até hoje e entre as décadas de 1960 e 1980 assina dois dos mais admiráveis filmes realizados no continente: O sangue do condor (1969) e A nação clandestina (1989).

Sanjines, a bem da verdade, não é totalmente desconhecido. Teoria e prática de um cinema junto ao povo (1979), livro no qual ele colige seu pensamento sobre cinema, é feito um balanço dos filmes que realizou, das condições de realização e da realidade do cinema boliviano, foi traduzido para o português (Goiânia, Mmarte, 2018). Destaco igualmente o incansável trabalho de Fabián Nuñez, da UFF, professor de história do cinema latino-americano cujas pesquisas dão especial atenção à obra de Sanjines. Não é o caso ainda de ignorar que seus filmes circulam mesmo que de modo bem restrito no espaço acadêmico por meio de sessões em cineclubes, debates sazonais em universidades, na Socine, em mostras encolhidas, e que na Contracampo Revista de Cinema, portanto um espaço para além do fechado circuito acadêmico, podem ser lidos artigos sobre O sangue do condor e A nação clandestina. De qualquer forma, as menções aqui são justamente para reafirmar que o cinema de Sanjines é quase totalmente desconhecido, e que se seu nome pode despontar como referência em aulas, debates etc., seus filmes encontram poucos espaços, motivos em suma para exibição, por isso a garimpagem. Com o risco, pois não, de ser injusto e não registrar iniciativa que faria jus mencionar.

Ukamau (1966)

Cabe, por conseguinte, uma nota rápida. A produção cinematográfica na Bolívia praticamente tem início com Jorge Sanjines no começo da década de 1960. E o que ele fez não encontra nem longinquamente paralelo na realidade cinematográfica de seu país. É o admirável caso de um artista em relação ao qual não é possível destacar nenhuma tradição que o anteceda e que, malgrado, realiza uma obra que não se descola dessa mesma realidade nem impulsiona realizadores além dele próprio. Não há um antes e um depois, há simplesmente ele no cinema boliviano. Ukamau (1966) é seu primeiro longa-metragem e este é igualmente o nome do grupo liderando por ele e que estará por trás de suas realizações posteriores. Tanto quanto Sanjines, o Grupo Ukamau se mantém ativo desde a década de 1960 e seu projeto mais recente, de 2021, é Los viejos soldados. O sentido de longevidade do grupo – quase sessenta anos de atividade – não deixa de impressionar. Mas, Ukamau, sob certos aspectos uma produção amadora falada em aymará, ganhou projeção porque foi exibido no Festival de Cannes em 1967. E é essa projeção que estimulará a continuidade do grupo, mesmo em condições adversas.

Na sequência desse primeiro longa, Sanjines fez O sangue do condor, película de grande impacto e que isoladamente seria suficiente para colocá-lo no mesmo plano de debates em que se inserem  Fernando Solanas, Octavio Getino e o Terceiro Cine na Argentina, assim como Glauber Rocha e sua proposta de Cinema Tricontinental. Num escopo mais amplo, ainda que não dialogue com o cinema em seu próprio país, Sanjines está em sintonia com o que se fazia e se discutia a respeito dos caminhos do cinema latino-americano. Ou seja, sob esse aspecto, ele não só não se encontra isolado como interage com propostas que sinalizam para um enfrentamento comum. Enfim, O sangue do condor assinala um momento em que cineastas na América Latina tinham em vista bater de frente com a hegemonia cinematográfica, assim como oferecer alternativa com um cinema marcadamente político, terceiro mundista, em confronto com o imperialismo. Isso exige repensar não somente o filme em si, mas suas condições de produção. Ora, O sangue do condor só foi possível porque o Grupo Ukamau contou com empréstimos, hipotecas e doações que lhe deram condições mínimas para realização. E mesmo assim a produção esteve sob constante risco de paralisia.

Sanjines e sua equipe

Entre O sangue do condor e A nação clandestina, Sanjines, com enorme esforço para a obtenção de recursos, filmou pouco. Isso se deve a uma escolha radical: não se afastar de uma concepção de cinema segundo a qual a importância primária deste é funcionar como instrumento de denúncia das condições de vida de um povo. O título de seu livro manifesto não é mero floreio retórico. Com essa escolha radical, para ele seria um contrassenso realizar um cinema que capitula diante de fetiches da indústria, portanto de acomodações a imperativos que jogam com contradições na relação entre quem domina e quem é dominado. Por isso, por saber que precisava se manter firme em seus princípios, no campo da ficção em sentido estrito há um hiato entre essas duas obras. Fiel a uma cinematografia junto ao povo, dedicou-se à realização de documentários de viés ensaístico. Em 1971 surgiu A coragem do povo, que trata sem medo da realidade política boliviana, convulsionada por golpes de estado em sequência. Sua fita seguinte foi realizada no Peru, O inimigo principal, em 1974, que contou com a presença de camponeses, trabalhadores e estudantes. Do Peru ele foi para o Equador e fez Fora daqui, em 1977, em que novamente reúne camponeses. Itinerante, ele voltou à Bolívia para realizar em 1983 As bandeiras do amanhecer. Com esse conjunto, uma obra, como se pode notar, feita no calor da hora, nas condições possíveis para o momento e sempre exposta a riscos. Resultado de sua decisão radical, a circulação desses filmes ocorreu praticamente só em zonas mineiras e comunidades indígenas. Agora, como já assinalado, razoavelmente possível por meio de torrentes.

Sanjinés e Beatriz Palacios, codiretores em “As bandeiras do amanhecer”

Depois de O sangue do condor, Sanjines voltou à ficção, por assim dizer em sentido estrito, com A nação clandestina, um projeto ambicioso que, conforme o fetiche classificatório de quem gosta de listas, pode ser tomado como sua obra prima. Nesses dois filmes, importante destacar, há uma espécie de fio condutor: a relação tensa entre povos indígenas com religiosidade e cultura ancestrais e o contato predatório com o estrangeiro. Em O sangue do condor o foco é uma comunidade quéchua, e boa parte do filme é falado nessa língua; já A nação clandestina filma uma comunidade aymará que igualmente se comunica na língua ancestral. No primeiro, o conflito se estabelece quando um grupo de norte-americanos do Corpo de Paz, uma agência federal criada pelo presidente Kennedy para auxiliar países do terceiro mundo, se aproxima da comunidade. A presença dos norte-americanos, no entanto, gera desconfiança de que eles estariam esterilizando as mulheres quéchuas. O atrito tem por desfecho o alvejamento do líder comunitário. No segundo, por sua vez, o conflito ocorre quando uma criança aymará é doada para ser criada por uma família branca em La Paz. Inadaptado no mundo dos brancos, quando adulto ele volta à comunidade, onde sobre ele cobre a sombra de esbranquiçamento. Desajustado nos dois mundos, segue ele uma trilha com destino trágico, a se conceber a tragédia em sentido grego.

Tendo em mente esse fio condutor, esses dois filmes são marcados pela oposição entre a vida na comunidade e na cidade. Quéchuas e aymarás formam grupos isolados, mantém suas tradições, religiosidades, hábitos, crenças que são afetadas pela presença estrangeira. Essa afecção se dá tanto pela imersão do estrangeiro em seus respectivos mundos quanto pelo trânsito inevitável de quéchuas e aymarás no mundo da cidade. Alvejado em razão do confronto com o grupo do Corpo de Paz, o líder comunitário quéchua de O sangue do condor foi internado num hospital em La Paz graças à intervenção de seu irmão, que havia deixado a comunidade e trabalhava na cidade como operário. Enquanto agoniza na cama, seu irmão peregrina sem sucesso pelas ruas de La Paz para obter o sangue que salvaria sua vida. Na cama e na rua, ambos sofrem toda sorte de rejeição em razão da origem indígena. Desajustado no mundo dos brancos, o protagonista de A nação clandestina, que fora educado distante dos aymarás, serve o exército e entre suas ações a de desarmar o povo. E no povo ele reencontra seu irmão, que combate militares que deram um dos tantos golpes na Bolívia. É a partir dessa experiência que ele decide abandonar o exército. De volta à aldeia em que nasceu, ele se casa e assume a liderança da comunidade. Contudo, seus laços suspeitos com o mundo de La Paz geram desconfiança de traição e ele é expulso da aldeia de forma humilhante. Transitando em dois mundos, escorraçado por ambos, ele toma uma decisão fatal: se oferece em sacrifício numa dança ritual até a morte, jacta tata danzanti, no centro da aldeia.

Para quem se dispuser a assistir a esses dois filmes de Sanjines, uma recomendação necessária: manter atenção às distorções temporais na narrativa, que são mais fortemente acentuadas em A nação clandestina, uma obra mais longa e mais ambiciosa. Em decorrência, envolve um escopo maior de locações, cenários, personagens e situações. O flashback, quando surgiu, gerou desnorteio no espectador acostumado com a narrativa clássica, em que a ação se dirige sempre para o futuro. Não obstante, com o tempo, o uso de flashback deixou de ser novidade e geralmente é orientado por uma regra básica: plano no rosto do protagonista, fade out e abertura para uma ação no passado. Tanto em O sangue do condor quanto em A nação clandestina o tempo presente é bruscamente sucedido por uma ação com temporalidade dissonante. Em O sangue do condor, o recurso ao flashback é utilizado em alguns momentos de modo a que o espectador não tenha dúvida de que a ação que passa a ver está no passado. Mas Sanjines alterna em sua narrativa um paralelismo constante entre o presente e o passado de modo a que em alguns momentos seja necessário ter atenção redobrada para perceber, na diegese, se o que está sendo visto é o presente do passado de uma ação já exibida, o passado desse presente ou uma ação futura do presente do passado. Pequenas informações, sutis detalhes dão a senha para que o espectador veja em que tempo a ação ocorre.

O procedimento de distorções temporais é razoavelmente tímido em O sangue do condor quanto se considerada A nação clandestina. Neste segundo filme a ação presente – a jornada de volta do protagonista para dançar a dança da morte na comunidade em que nasceu – começa depois de dez minutos de projeção. De maneira que, ao invés de um flashback, o mais correto é falar flashforward. O filme começa com o lamento da mãe e do irmão no momento em que o protagonista, acusado de traição, é expulso de sua aldeia. A conversa entre a mãe e o irmão é cortada e então, em flashback, o momento em que o protagonista foi doado a uma família branca. Novo corte e em flashforward vemos o protagonista adulto, preparando-se para voltar à aldeia e assim realizar a dança ritual. No restante do filme, sempre com a utilização de distorções temporais, os sinais que indicam sua sina e os acontecimentos que o levaram a tomar a decisão que tomou. Com esse procedimento, questões podem ser levantadas: as distorções temporais exploradas por Sanjines são ornamentais? Elas têm exclusivo efeito estilístico e com isso visam a dar complexidade ao filme? Algo como satisfazer expectativa de quem espera ver um tipo de obra que escapa ao convencional e se encaixa no catálogo “filme cabeça”? Portanto, para quem goste ou não, que a trama seja julgada conforme procedimentos maneiristas?

Sanjinés, 2011

Não antecipo respostas para as questões levantadas. Entendo mesmo que seria leviano alinhavar saídas apressadas. O que me parece oportuno apontar, como suspeita, é que para Sanjines a lógica que se sustenta no princípio da causalidade, implicação entre causa e efeito, talvez não se aplique da mesma maneira para os povos dos altiplanos andinos. Reafirmo, é apenas uma suspeita, pois não nego que vi, principalmente A nação clandestina, tentando reconstruir o sentido das ações segundo a relação entre causa e efeito. Por isso, poderia organizar a narrativa numa cronologia que vai do momento em que uma criança branca é ofertada a uma família branca até o momento em que essa mesma criança, adulta, se oferece em sacrifício por não conseguir sobreviver dividida entre dois mundos. Ocorre que ao trazer à baila, num movimento de mão dupla, a oferenda, é inevitável ponderar que A nação clandestina, talvez, se situe num plano além de minha compreensão. O filme de Sanjines exige que poderemos sobre o sentido de palavras como “oferenda”, “ornamento” e “tragédia” num movimento em que o espectador adentre em um universo em que essas palavras estejam em conformidade com uma outra forma de vida. Sem essa prévia, vê-lo pode se resumir ao vazio gostei ou não gostei. Quer dizer, A nação clandestina não é propriamente um filme para ser compreendido, com o sentido que a compreensão tem no mundo ocidental, mas para propiciar uma experiência com uma forma de vida que, justamente, escapa à nossa apreensão. Não cabe, portanto, assistirmo-lo com uma expectativa preestabelecida, que se reduza a adjetivos vazios de sentido. A impressionante paisagem do altiplano andino é simultaneamente encantadora e apavorante.

A complexidade que caberia bem no epiteto “filme cabeça” perde o sentido, talvez, na apreensão de que Sanjines exibe uma realidade da qual temos lampejos e que, por isso, não é de fato apreendida. Dessa perspectiva, ou visão de aspecto, o modo com que entendemos o código de honra ou a tragédia tem sentido diverso do da dança ritual até a morte do protagonista de A nação clandestina. Com isso, o recurso das distorções temporais acaba exibindo para o espectador de uma forma de vida diversa da de um aymará uma realidade que lhe é efetivamente opaca. Não vejo nisso, nessas escolhas de Sanjines, relação com o fato de ele não ter o reconhecimento que poderia. Muito mais distantes fisicamente de nós, transitam na Mostra de Cinema de São Paulo e são cultuados diretores como Lav Diaz e Apichatpong Weerasethakul. Mas essas escolhas não deixam de revelar certa animosidade que, para mim, faz com que um dos grandes nomes do cinema latino-americano seja tão marginal numa cinematografia já em si tão marginal. Minha expectativa, e com isso a motivação para escrever sobre Sanjines, é que em algum momento obras como O sangue do condor e A nação candestina não se restrinjam a curiosidades arqueológicas que satisfazem aventureiros e curiosos em busca de civilizações perdidas no tempo e no espaço. E com o evidente sentido de dizer que não vou dizer o que já estou dizendo: curiosidades arqueológicas em duplo sentido, o literal e o figurado. Literal quando se pensa no exotismo de um mundo visto com o descompromisso de um turista que deseja tão só ver o exótico. Figurado quando se pensa que um filme é como uma peça de museu a ser contemplada sem qualquer sentimento de culpa.

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