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Pinto vem Aí

Mostra no Itaú Cultural Play recupera filme pouco conhecido de Olney São Paulo

Por Ivonete Pinto | 04.06.2022 (sábado)

A mostra Viva a democracia, do  Itaú Cultural Play, traz  12 documentários que tratam diretamente de política e pode revelar algumas raridades. Não porque sejam títulos ocultos de difícil acesso, mas porque, alguns  ao menos,  há muito não se ouvia falar. Pinto Vem Aí, é um deles. Média-metragem de 1976, acompanha a chegada do político baiano Francisco José Pinto dos Santos, conhecido como Chico Pinto, à Feira de  Santana.

Não é por causa do título jocoso, nem por qualquer parentesco com o personagem,  que nosso interesse foi despertado, mas por ser assinado por Olney São Paulo. O título, na verdade, apenas se apossa de um slogan de campanha do político Chico Pinto, que anunciava sua volta depois de um período de prisão e desterro (mesmo slogan adotado pelos correligionários de Leonel Brizola  quando de sua volta do exílio com a pichação “Brizola vem aí!”). O interesse primeiro do diretor vem do fato dele mesmo, também baiano,  ter morado por muitos anos em Feira de Santana.

Olney São Paulo é um nome caro ao cinema de guerrilha, ao cinema  paupérrimo, de uma época em que nem se falava em baixo orçamento. Filmes em preto e branco não para marcar estilo, mas porque a película colorida era muito mais cara.  Marginal nas condições de produção, ao mesmo tempo contribuiu com uma obra de poderoso teor político e estético. Manhã cinzenta (1969), engajado e revolucionário,  é o filme  mais conhecido do diretor, que não raro precisava fazer exibições clandestinas de sua obra.

Olney São Paulo

Pinto vem aí poderia ser visto como algo datado, mas muito antes pelo contrário. Em tempos de campanhas eleitorais, o percebemos como bastante atual,  apenas que a militância agora  está associada às tecnologias. Olney São Paulo flagra um país polarizado entre Arena (Aliança Renovadora Nacional) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Enquadra gente pobre colando cartazes, fazendo campanha do jeito que podem. Um frenesi hoje  substituído pelas redes. A pauta  não estava nas fake news, mas na censura, já que o filme se passa em plena ditadura cívico-militar. O personagem Chico Pinto, prefeito cassado  e preso pelos militares,  volta a sua cidade natal, Feira de Santana, na Bahia,  para fazer campanha para deputado.  Ele construiu sua trajetória como advogado dos sindicatos e tem um compromisso genuíno com os trabalhadores.

Olney São Paulo sabia muito bem o que era a censura, pois teve o seu filme Manhã cinzenta interditado e ele próprio foi preso, acusado de subverter o sistema.  Diferente de Pinto vem aí, Manhã cinzenta mistura ficção com não ficção apostando no experimental. O país do filme é um país imaginário para driblar a censura. Mesmo assim foi considerado altamente subversivo.

Realizado no calor da hora, como o são os documentários que mostram campanhas eleitorais, Pinto vem aí inclui falas corajosas do candidato, que denuncia a censura à imprensa e até a autocensura.  Chico Pinto afirma que ele mesmo, para tentar ser publicado, praticou a autocensura  e ainda assim não teve êxito. Dos 125 artigos que escreveu para os jornais, a censura deixou passar apenas cinco. “Após o AI5, o país vive sob o terror e sob o medo”, diz ele.

E se hoje tem essa conversa de terceira via ─  que cada dia se mostra mais capenga ─, no período da ditadura não havia esta possibilidade: apenas dois partidos disputavam  eleição para presidência, porque o pleito era indireto, mas disputavam vagas para os demais cargos. E o MDB não era propriamente de esquerda como o regime pintava, mas um saco de gatos que só significava ser oposição à situação. A única possível em função do bipartidarismo imposto pelo Ato Institucional número 2.  Chico Pinto se ressente do perfil do MDB e diz que no futuro, quem sabe o povo, consciente da necessidade de se organizar, poderá criar condições para que o partido venha tomar posições mais progressistas. Era um pragmático e um ingênuo.

Cena de ‘Pinto vem aí’

Diante de um cenário de carreatas com fuscas, TLs e opalas, pode-se supor que se trate de um filme datado. Engano. O diretor entrega um documentário que ainda hoje é moderno em sua forma, abrindo mão da narração. Não há crédito para os nomes que vemos na tela. Os créditos de abertura e encerramento são pichados em muros. Muito por falta de recursos, muito mais ainda porque os militares não suportavam pichação, o que se configurava como ato político de rebeldia por parte da direção. Há uma coreografia de planos-detalhes de mãos, pés com chinelos rotos, câmara na mão, imagem fora de foco, cenas escuras dos comícios. Um cinema direto sem a organização e a assepsia de um Robert Drew ou de um Pennebaker. Todas as informações que o espectador tem, vêm das entrevistas que Chico Pinto dá para jornalistas quando chega ovacionado pelo povo em Feira de Santana. Sabemos por estas entrevistas  que ele foi  preso em 1964 acusado de “comunista”.  Mais tarde, já como deputado, tentou organizar o “grupo autêntico”, que se intitulava assim por assumir que representava os ideais da esquerda inicialmente constituída pelo MDB.

Por esta época, Chico Pinto fez um discurso inflamado na Câmara contra o ditador chileno Augusto Pinochet, que estava vindo ao Brasil para a posse de Ernesto Geisel. Condenado pelo Supremo Tribunal Federal, baseado na famigerada Lei de Segurança Nacional, perdeu o mandando e foi preso novamente. Um personagem importante da nossa política, que graças a Olney São Paulo ganhou um registro de sua necessária contundência.

É provável que Olney São Paulo precise ser redescoberto e ocupar um lugar de maior destaque no Cinema Novo e na própria história do cinema brasileiro. Grito da terra, de 1964, foi seu primeiro longa-metragem (Helena Ignez faz a protagonista). Realizado nos estestores da democracia, assim como Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha,  do mesmo ano, conseguiu ser liberado porque os mecanismos de censura não estavam organizados  ainda.

Pensar a democracia e o “fascismo colonial” denunciado por Chico Pinto, é pensar o Brasil de hoje. E se a Arena representava o partido testa de ferro do imperialismo norte-americano, o tal do neoliberalismo-sapatênis, ansioso por tudo privatizar, está representando o que mesmo?  Pena que Pinto não venha mais aí. Morto em 2008, se estivesse defendendo a terceira via estaria fora de lugar. Se  fosse do Centrão, estaria traindo sua biografia.

A mostra “Viva a Democracia”, com curadoria de Carlos Alberto Mattos, tem clássicos como Braços cruzados, máquinas paradas (1979), de Sergio Toledo Segall e Roberto Gervitz e esta pérola de Olney São Paulo. É gratuita e pode ser acessada clicando aqui.

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