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Críticas

A Luz do Demônio

Horror como metáfora psicanalítica.

Por Yuri Lins | 03.11.2022 (quinta-feira)

OBS: Alerta de spoilers durante o texto.

Em “A Luz do demônio” (EUA, 2022), o realizador Daniel Stamm tenta atualizar as clássicas narrativas de exorcismo, agregando ao gênero as pautas pertinentes do presente. Sai de cena o arquétipo simplório do bem contra o mal e investe-se numa tentativa de falar sobre traumas e possibilidades de cura. Contudo, como grande parte das produções recentes de Hollywood, resta aqui uma disparidade entre o discurso e a forma do filme.

Para conter o crescimento de casos de possessão demoníaca, a Igreja Católica abre uma escola para novos padres exorcistas. Mesmo sendo uma instituição secularmente tocada por homens, a Irmã Ann (Jacqueline Byers), sabendo possuir a vocação para o trabalho, batalha para ser a primeira freira a estudar e dominar o ritual do exorcismo. Ao passo que ela ascende na escola, um demônio passa a lhe perseguir, desvelando segredos do seu passado.

Pôster oficial

A Irmã Ann é alguém de personalidade disruptiva e que percebe um ponto cego na burocracia moral da Igreja: mesmo quando um exorcismo obtém sucesso, a sua experiência deixa um rastro de trauma na vítima. Demônios são seres que se alimentam da culpa e da vergonha que as vítimas sentem. Feridas tão profundas que não desaparecem com a subjugação da entidade. Aqui, o filme utiliza o envelope da possessão e do exorcismo para falar sobre as marcas que um abuso sofrido deixa nas pessoas. Não à toa, todas as vítimas de possessão mostradas no filme são mulheres.

Em  A Luz do Demônio, a Igreja peca em não oferecer o cuidado e o acolhimento às vítimas no momento posterior ao processo de exorcismo. A dissonância da protagonista passa justamente porque ela fissura, de dentro para fora, toda a tecnocracia da Igreja; um lufo de humanidade que carrega o perdão e amor ao próximo. Valores cristãos essenciais, mas que parecem esquecidos durante o processo da formação institucional da Igreja – que, no filme, passa a ganhar aspectos de uma organização militar, totalmente hierarquizada e com metas a cumprir.

Há uma cena reveladora de tal processo. Nela, a Irmã Ann faz um exorcismo clandestino, longe do controle da instituição.  A vítima é Emília (Cora Kirk), cujo exorcismo fora negligenciado pela Igreja devido ao fato de que ela, tendo sido vítima de um estupro, optou por interromper a gravidez que decorreu deste crime. Irmã Ann aplica sem sucesso os métodos historicamente estabelecidos. Diante daquela mulher marcada pelo crime, pela omissão e pela encarnação do mal, ela percebe que precisará, através do uso da palavra, fazer com que Emília recobre sua vontade de vida. Na literalidade da metáfora, o exorcismo encontra uma correspondência psicanalítica, onde o expurgo demanda de uma força interior da vítima, uma vontade a ser administrada pelo profissional que a acompanha.

Também a Irmã Ann possui os próprios demônios, tanto marcas profundas de uma culpa quanto uma entidade maléfica que a persegue desde o berço.  Surge em seu caminho a pequena Natalie (Posy Taylor), uma criança cuja possessão tornou-se um caso desenganado pela Igreja. Num esquema de reviravoltas do roteiro, fica-se sabendo que Natalie é a filha que a Irmã Ann teve em sua adolescência e que fora posta para adoção, o motivo de sua enorme culpa. Também revela-se que o demônio que Natalie carrega dentro de si é o mesmo que, no passado, possuiu a mãe de Irmã Ann, levando-a ao suicídio – um gesto que ela fez para proteger a filha.  

A arquitetação que o demônio faz para colocar Natalie e Irmã Ann em rota de colisão, agrega ao discurso do filme uma camada a mais de sua verve psicanalítica.  Quando o clímax é alcançado e a vida de Natalie está por um fio, Irmã Ann deixa-se possuir pela entidade, liberando a criança. A abnegação e o sacrifício, valores caros à moral cristã, tornam-se os meios pelos quais a protagonista conseguirá superar as próprias feridas. A luta sai da exterioridade e adentra em seu íntimo: uma vez que não há outra pessoa operando o seu exorcismo, o processo de extirpação do espírito maligno será alcançado através de seu autoperdão.

Todas as premissas aqui descritas são interessantes e poderiam ser base de um bom filme. Ainda assim, ao final, “A Luz do Demônio” peca por se ater demasiadamente às suas sacadas de roteiro, pouco pensando na forma cinematográfica. Todo o seu estilo é bastante burocrático, pautado em uma construção subserviente ao texto. Ele, por sua vez,  está  condicionado a simplesmente explanar os conceitos a serem abordados.  Toda a ideia de construção de atmosfera e de imersão na cena , na realidade do horror, é abandonada em prol do falatório de premissas. Ao terror prometido, resta a funcionalidade dos jumpscares e do uso inflado de um CGI incapaz de criar presenças assustadoras.  

Na sua avidez por atualizar o gênero, Daniel Stamm parece ir com muita sede ao pote. Sua visão do exorcismo enquanto um processo psicanalítico encontra poucas soluções criativas no interior da forma cinematográfica. A consequência é que o filme não consegue levar as suas premissas para além de uma literalidade.  O envelope do cinema de  gênero ao redor dos temas não é capaz de suportá-los para além da obviedade.

O filme de Daniel Stamm pode ser adjetivado como “necessário” ou “importante”, pois atende a certas demandas do espírito do tempo. Não seria difícil imaginar que ele possa agradar ao público que busca  no cinema mensagens políticas agradáveis à seu próprio gosto. Porém, há que pontuar como a primazia  do tema sobre a forma cria senão obras feitas a toque de caixa e escoadas a rodo.  Mais do que isso: condiciona o público a aceitar qualquer fragilidade em troca de alguns momentos de conforto ideológico. Ao final, “A Luz do Demônio” soa como um filme dirigido por um algoritmo dedicado a agradar.

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