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Críticas

O Exorcista – Devoto

Um tratado sobre o apaziguamento e a reconciliação

Por Yuri Lins | 12.10.2023 (quinta-feira)

William Friedkin está morto; seu último filme, The Caine Mutiny Court-Martial (2023), sequer ganhou estreia nos cinemas brasileiros, sendo lançado diretamente no streaming Paramount+. Por outro lado, O Exorcista – Devoto (EUA 2023),uma continuação do seu clássico de 1973, dirigida desta vez por David Gordon Green, está programado para estrear em todas as salas de cinema a partir desta quinta-feira, dia 12, e não deve encontrar dificuldades para fazer caminhões de dinheiro.  Eis a Hollywood atual: requentar velhas ideias enquanto seus verdadeiros autores amargam num limbo.

Ainda não assisti ao derradeiro Friedkin, mas vivi a experiência tortuosa de uma sessão do novo capítulo da gentrificação que David Gordon Green realiza em sua abordagem aos clássicos do horror. Com O Exorcista – Devoto, a estratégia segue um padrão semelhante ao que foi utilizado por ele na trilogia Halloween: tomando a obra original como a pedra angular e ignorando suas sequências, a intenção é produzir novos filmes com uma linguagem e temas mais contemporâneos. Ainda que não se possa querer que Green seja John Carpenter ou Friedkin,compará-los pode proporcionar uma perspectiva sobre o estado atual do cinema. De fato, ao longo do tempo, algo se perdeu, e as tentativas de modernização dessas franquias deixam essa lacuna evidente.

O retorno de Ellen Burstyn à franquia é subaproveitado.

De partida, O Exorcista – Devoto faz crer que seguirá a narrativa calma de seu original. Começa no Haiti, onde uma turista americana grávida, Sorenne (Tracey Graves), passeia com seu marido, Victor (Leslie Odom Jr.), um fotógrafo. Um terremoto traz uma tragédia, obrigando Victor a escolher entre salvar sua esposa ou o bebê que ela espera. O filme então salta no tempo para os dias atuais, com a filha do casal, Angela (Lidya Jewett), já adolescente, assinalando a escolha tomada e a ausência da mãe. Tudo isto é mostrado com cadência e sem pressa para incorporar o elemento sobrenatural à estória. Entretanto, ainda que a progressão narrativa comece em fogo brando, a montagem constantemente introduz às cenas uma série de imagens cortadas abruptamente, sequências de imagens em rápida sucessão e jumpscares que aplicam sustos sem um propósito claro, buscando apenas o efeito pelo efeito. Parece que, partindo de um roteiro com sequências compostas com uma cadência mais lenta, o trabalho de edição age para preencher os tempos mortos e os espaços de silêncio previamente estabelecidos. É como se houvesse uma competição entre a ideia original cristalizada no texto e sua distorção durante o processo de pós-produção. 

Ainda que pervertida, a escolha pela calma se faz sentir no início do filme. Em um cenário tranquilo de um bairro suburbano americano, a família leva uma vida simples e unida. Angela vai à escola, enquanto seu pai, Victor, segue seu trabalho como fotógrafo e pratica boxe. A convivência com vizinhos e colegas é harmoniosa, e, mesmo com a ausência da mãe, eles encontram uma maneira de seguir em frente. No entanto, a lembrança da perda está sempre presente. Angela entra no quarto da mãe e apanha um lenço que pertencia a ela, e é a partir desse objeto que o elemento sobrenatural começa a se manifestar – marcando também o ponto em que o próprio filme adentra em um caldeirão de caos.

A iconografia do filme de 193 retorna, no entanto, de maneira superficial.

Angela e sua amiga Katherine (Olivia O’Neill) planejam passar o tempo fora de casa após o término das aulas, dirigindo-se a uma mata onde realizam um ritual na esperança de permitir que Angela se comunique com sua mãe, onde o  lenço tomado será o que permitirá a comunicação. Mesmo que Angela nunca tenha conhecido pessoalmente sua mãe, o luto é uma constante em sua vida, uma parte intrínseca de sua identidade que nunca foi superada, mesmo com o passar do tempo.Conversar com a mãe falecida assume uma qualidade transcendental, tornando-se uma busca pelo autoconhecimento, uma tentativa de acessar uma presença que foi a matéria-prima da qual ela mesma fora gestada.  Como era de se esperar, o ritual resulta no retorno das forças demoníacas do primeiro filme, onde jumpscares revelam rostos monstruosos de um mal antigo que se apossa das jovens.

Após a introdução do elemento fantástico, a narrativa do filme adquire um ritmo mais acelerado, com Victor liderando a busca por sua filha desaparecida. Ele atravessa diversos locais e enfrenta conflitos à medida que o tempo passa. No entanto, enquanto a primeira parte do filme ainda mantinha alguma estrutura que permitia ao espectador acompanhar os eventos, a segunda parte se entrega à total dispersão. A edição do filme torna-se irremediavelmente caótica, com imagens desconexas se acumulando e uma falta de continuidade lógica que alinhe os planos. Nesse ponto, uma série de novas situações e personagens são introduzidos e se amontoam, misturando-se em meio ao estrionismo visual. A acumulação de elementos torna extremamente difícil para o espectador desenvolver qualquer vínculo emocional com o que está sendo apresentado. Por vezes, as situações mais dramáticas se apresentavam com um absurdo tão pronunciado que surgia a dúvida se o que se via era uma paródia de um filme de horror ou apenas um embuste estético.

O diabo está sob a pele.

Que se faça um esforço. Em meio a essa bagunça, cabe ao espectador se concentrar em Victor para entender o dilema do filme, mesmo que o sentido pareça estar subjugado pelo caos. Ele é um homem pragmático, procura sua filha desaparecida em meio a uma confusão crescente, enquanto outros ao seu redor oferecem ajuda com um toque de condescendência. Em uma cena que mantém o espectador em dúvida se é uma paródia ou algo mais, Victor entra em sua casa e encontra estranhos realizando um ritual de matriz afro em nome das meninas desaparecidas. Ele renega essa fé, assim como rejeita as palavras de esperança oferecidas por Ann (Ann Dodd), sua vizinha católica.  O que o tornou assim? Terá sido a perda de sua esposa ou outro motivo inacessível? No entanto, esse aspecto oferece um fio condutor que permite ao espectador compreender ou se relacionar com o protagonista. De um lado, um homem determinado em sua busca, e do outro, uma variedade de personagens que agem de maneira absurda com base em suas crenças. Já é algo. 

Após cerca de três dias, Angela e Katherine são encontradas, retornando desorientadas e carReagando o mal em seu interior, manifestando eventos paranormais. Contudo, os problemas mais graves de “O Exorcista – Devoto” surgem durante a cena de exorcismo. O cético Victor se une a outros personagens, como os pais protestantes de Katherine, uma vizinha católica, um padre e uma mulher que anteriormente estava envolvida em um ritual de matriz afro em sua casa, para realizar o exorcismo. Embora provenham de crenças distintas, convergem no ponto limite entre vida e morte. Aqui, o diretor David Gordon Green expõe a sua visão moral para o filme, colocando o dilema de escolher qual criança deve sobreviver, já que apenas uma pode. Isso leva a uma reflexão sobre até que ponto o amor por um ente querido pode ser estendido a ponto de sacrificar a vida de outra pessoa. O filme sugere a necessidade de superar as diferenças e construir um senso de comunidade baseado no reconhecimento do outro. Quanto à resolução do filme, deixo para os espectadores corajosos que optarem por assisti-lo. O que me interessa, todavia, é pensar na lacuna entre o modo como o diretor realiza sua recomposição do universo de um clássico e a visão original do filme.

David Gordon Green é um cineasta que acredita na reconciliação como norte possível aos males da vida. Sua abordagem ao dar continuidade a clássicos do horror envolve o uso de suas mitologias e místicas para reunir o que o mal havia separado. Em seu filme Halloween (2018), vemos Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) se reconciliar com sua filha por meio do enfrentamento do mal personificado por Michael Myers. Em Halloween Ends (2022), o último capítulo de sua trilogia, o horror gráfico cede espaço a um regime de conversação, quase terapêutico, que busca expurgar através da fala o impacto psicológico deixado pela vilania de Michael Myers na cidade que testemunhou seus massacres. Já em O Exorcista – Devoto, o discurso sobre a quebra de barreiras e diferenças em prol de um bem comum fica simbolizado na última cena, quando as personagens do filme original de 1973, Chris MacNeil (Ellen Burstyn) e sua filha Reagan (Linda Blair), se reencontram após anos de conflitos. Ser um reconciliador é a resposta que Green parece oferecer ao mundo contemporâneo, que se torna cada vez mais dividido e individualista, frequentemente marcado pela disseminação do ódio. Assistir a um filme e revisitar antigos traumas nos rostos demoníacos do passado pode ser uma maneira de avançar; unir-se na escuridão da sala e permitir que a luz do ecrã ilumine novos caminhos.

David Gordon Green acredita na reconciliação daquilo que a maldade separou.

O que difere na abordagem de David Gordon Green e torna inevitável a comparação com os diretores dos filmes originais que ele está continuando é a maneira como eles decidem olhar o mal de frente. Em “Halloween” (1978), John Carpenter começa com uma imagem impactante: vemos, pelos olhos de uma criança, a transformação do mal durante a noite de Halloween. A criança coloca uma máscara, seu novo rosto, pega uma faca e comete seu primeiro assassinato, marcando o nascimento do mal e o fim da inocência. Anos depois, essa criança se torna a personificação do mal absoluto, uma presença sombria em contraste com a luz de um subúrbio americano. Carpenter utiliza uma geometria precisa para filmar os espaços, controlando meticulosamente as distâncias e o lugar que o monstro ocupa naquele cotidiano. Michael Myers, o vilão, surge no fundo do quadro, quase camuflado entre arbustos ou árvores, e depois desaparece num piscar de olhos. Sua progressiva aproximação dos protagonistas é como uma ameaça crescente, enchendo o ambiente até se tornar insuportável. Quando o monstro finalmente aparece à vista, não há como desviar o olhar ou evitar seu ataque; cabe aos protagonistas encará-lo de frente e tentar sobreviver.

Da mesma forma, em O Exorcista de 1973, testemunhamos a transformação aterrorizante de Reagan MacNeil, uma criança possuída por um mal ancestral que profana seu corpo de maneira perturbadora. Seu corpo se retorce, seus cabelos se emaranham e ficam ensebados, sua pele se cobre de equimoses, e sua boca expele secreções venenosas. A voz de Reagan é substituída por um tom demoníaco e estridente que expressa apenas lascívia e obscenidades. Assim, tudo o que antes representava pureza e inocência na imagem de Reagan é ressaltado pela perversão a que é submetida. Quem não se estremece ao lembrar da perda da virgindade da garota, quando o demônio, por meio de um crucifixo transformado em fórceps, viola seu hímen? O que Friedkin faz é trazer à tela a presença de tudo aquilo que os pregadores da moralidade encobrem com sua hipocrisia. No âmago de todas as consciências bem-estabelecidas e confortáveis, reside o gesto de encobrir um submundo de violência que encarna um horror irreconciliável. Embora a representação do pior dos demônios não seja suficiente para englobar a totalidade desse terror, ao menos fornece um índice simbólico que auxilia na sua compreensão. Religião, família e Estado, todas essas entidades, munidas de discursos inabaláveis e dogmatizados, frequentemente, quando confrontadas com uma verdadeira violência, atuam na preservação de um status quo, uma manutenção que, em certos casos, é mais cruel do que uma possessão demoníaca.

A possessão só é melhor vista nas fotos de still do filme.

Ambos Carpenter e Friedkin, apesar de seus estilos de direção distintos, compartilham a compreensão de que o cinema é uma arte da presença. É necessário encarar o monstro para superá-lo, coexistir no mesmo espaço, compartilhar o mesmo ar e o mesmo átimo de tempo. Em seus filmes, o bem e o mal são elementos agindo dentro das cenas, cada um emitindo uma energia que é cuidadosamente moldada para convergir o físico e o sobrenatural, o real e o extraordinário. Em David Gordon Green, todavia, tudo é encobrimento e dissimulação; mantendo-se na zona segura onde a reconciliação é sempre possível. Essa tendência se reflete na organização de seus filmes. Em Halloween, mesmo ao tocar em temas sensíveis, ele mantém uma certa distância através do diálogo, enquanto em O Exorcista Devoto, a montagem caótica não permite ao filme contemplar o verdadeiro horror enfrentado pelas personagens possuídas, pois a profusão de cortes e imagens aleatórias não faz mais do que desviar o foco do que não deve ser ignorado. 

Diferentemente de Carpenter e Friedkin, David Gordon Green evita constantemente encarar o mal de frente –  com exceção de seu primeiro Halloween em 2018, ainda o seu melhor filme. Em Halloween Ends, ele prioriza um regime de expiação por meio da fala, deslocando o grafismo do horror para segundo plano. A palavra se torna o espaço de reconhecimento e apaziguamento das contradições e violências, criando um lugar seguro para a reconciliação. De modo semelhante, em O Exorcista – Devoto, Green elabora o ritual de exorcismo como o estabelecimento de uma moral liberal profundamente abstrata. A concepção de “superar todas as diferenças em um gesto de união” torna-se viável, pois, curiosamente, tais diferenças raramente são exploradas como fontes de conflito. Embora o filme sugira brevemente um potencial conflito racial entre Victor, um homem negro, e os pais de Katherine, que são brancos e protestantes, essa tensão é rapidamente subjugada. De maneira similar, o filme iguala ceticismo, religião protestante, catolicismo e uma religião de matriz africana na mesma arena de reconciliação. No entanto, a religião de matriz africana é retratada não possui qualquer relevo distintivo, quase como uma caricatura das tradições conhecidas, como o vodu e o candomblé, ou de qualquer outro sistema de crenças afro, mas sem especificidades capazes de afastar sua representação de apenas um gesto de condescendência. Novamente, a oportunidade de explorar as tensões entre essas três perspectivas desaparece rapidamente.

Em “O Exorcista Devoto”, tudo o que poderia ser considerado crise, todas as possibilidades de conflito, surgem e desaparecem como se tivessem sido sufocadas pela ânsia apaziguadora de David Gordon Green. Toda essa recusa em desenvolver pontos de tensão encontra sua melhor representação no modo como o próprio monstro não é visto com frontalidade. A constante fragmentação da montagem impede que o mal se imponha como uma presença disruptiva capaz de refletir a fragilidade da moral estabelecida pelos personagens. Como resultado, não há um mínimo de desconforto ao contemplar os corpos possuídos de Angela e Katherine, pois eles são pouco mostrados como agentes das cenas. Em vez disso, tudo o que emana deles é replicado por meio da profusão de imagens que a montagem cria para desviar o foco da contemplação. O que resta são sustos, luzes piscantes, cacofonias e desorientações, efeitos que não geram nenhum afeto além da sensação de que uma oportunidade está sendo perdida.

Assim que possível, um texto sobre The Caine Mutiny Court-Martial (2023).

 

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