What Did Jack Do?
Duelo entre David Lynch e um macaco-prego acusado de assassinato. É absurdo e é maravilhoso.
Por Luiz Joaquim | 05.12.2022 (segunda-feira)
Um muito mais que bacana filme foi discretamente disponibilizado mundialmente pelo streaming dois meses antes de a pandemia “fechar” o Brasil em março de 2020. Foi lançado em 20 de janeiro daquele ano, data de aniversário de seu diretor, e o título ainda hoje permanece discreto no mar de opções insossas no catálogo da Netflix.
O filme, de apenas 17 minutos de duração, foi uma encomenda da Fondation Cartier pour l’art contemporain e havia sido rodado quatro anos antes da estreia na Netflix (tendo sido planejado desde 2014). Conta com apenas quatro personagens em cena. Um deles é um macaco de nome Jack. E um outro personagem também não é humano. Mas, o que Jack fez? (pergunta o título do filme).
É uma pergunta que o espectador terá de se fazer durante toda a sessão de What did Jack do? (EUA, 2016). Fará com a ajuda do detetive investigador de homicídios, interpretado pelo diretor do filme, David Lynch, que interroga Jack num café de uma estação de trem temporariamente interditada.
Jack, um Macaco-prego, é minúsculo, mas durão e tem a boca suja.
Enquanto o detetive insiste numa confissão espontânea daquela pequena criatura suspeita de ter matado Max, amante de sua primeira esposa, Sally, o macaquinho se esquiva das insinuações jogando a bola de volta ao interlocutor, como num jogo de xadrez na qual cada palavra pode ser incriminadora.
A conversa-interrogatório, regada a café e cigarro, nos chega num preto e branco contrastante, no melhor da atmosfera noir do cinema norte-americano e, como enxadristas linguísticos, detetive e suspeito brincam com ditos populares que, na tradução para o português (por mais esforçada que seja) perde um tantinho de sua força cômica.
Por exemplo, é assim na resposta irônica que Jack dá ao investigador, dizendo que ele é ‘a Jack of many trades’, tornando-se na legenda ‘sou um pau para toda obra’, e assim o trocadilho com o seu nome é perdido.
Ainda assim, sob a adequação da tradução para o português, What did Jack do? nos permite perceber a maestria desse roteiro que, temos a impressão, só sairia mesmo da cabeça de Lynch.
What did Jack do? deixa o humor em suspensão/tensão por toda a duração do filminho, isso por conta da contrastante seriedade entre o empenhado trabalho do detetive – no melhor estilo dos filmes policiais – contra a minúscula figura do suspeito: o pequenino primata Jack, tido como um sanguinário perigoso.
Quando a garçonete (Emily Stofle, esposa de Lynch) traz o café para mesa, ela alerta: “A estação está repleta de policiais. Parece que tem um assassino à solta”, para logo em seguida termos a reação preocupada de Jack.
Os dois olhinhos bem abertos e muito próximos um do outro do macaco são perfeitos como representação da opressão que sofre no interrogatório. E, no primoroso roteiro de Lynch, a conversa acaba derivando para a misteriosa e chocante vida sexual de Jack, com sua desenfreada paixão por uma galinha: Toototabon (interpretada pela própria).
“Seja um homem, Jack, e me conte sobre ela”, diz o investigador com sua voz anasalada, com Lynch impávido, numa cara de pau divertidíssima. Como resposta, Jack ironiza, com sua voz cavernosa: ‘Vai trepar numa árvore!’ (que ficou traduzido como ‘Vá se catar’).
What did Jack do? concentra a maior parte de suas cenas em planos e contraplanos fechados nos dois protagonistas, num cenário para lá de econômico, mas com seu enredo sendo tocado por esse roteiro-diálogo primoroso, somado a performances cínicas (se é que podemos chamar Jack de cínico).
É essa delícia de receita que nos faz querer revisitar What did Jack do? várias vezes. E rir sempre, a cada visita.
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