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Baxter, Vera Baxter

Palavra, silêncio e mistério na obra de Marguerite Duras

Por Davi Barros | 12.05.2023 (sexta-feira)

 – Baxter, Vera Baxter (1977), disponível na plataforma de streaming MUBI.

Apesar de relativamente ofuscada pelos cineastas da Nouvelle Vague, é difícil imaginar uma figura mais radical no cinema francês dos anos 1960/1970 do que Marguerite Duras. Vinda da literatura, que desempenha um grande papel em seus filmes, parte do que a motivou a se tornar cineasta foi sua insatisfação com as adaptações cinematográficas de suas obras literárias. Em todos os seus filmes nota-se o poder da palavra, advindas claramente de alguém com pleno domínio sobre a escrita, mas também o poder do silêncio, que permeia a sua obra de forma inquietante e sublime.

Em Baxter, Vera Baxter (1977) há de certa forma uma ruptura com esse elemento, já que ouvimos uma banda sonora ininterrupta por praticamente toda a duração do longa-metragem. A música vem de uma festa que nunca é mostrada ao público, relembrando uma exterioridade daquele pequeno e claustrofóbico universo no qual os personagens habitam. O cenário, similar a tantos outros filmes de Duras como Destruir, disse ela (1969) e A mulher do Ganges (1973), parece desconexo do restante do mundo, como se existisse em um certo tipo de limbo temporal e existencial. A direção dos atores remete levemente a Robert Bresson, cineasta bastante admirado pela diretora, e adicionam a esse ar de mistério que assombra o longa. 

 

O uso de uma espacialidade minimalista é uma das marcas de Marguerite Duras.

Mistério, outro fator essencial na obra de Duras, é o que impulsiona a narrativa, a descobrir mais sobre a personagem título. Em India song (1975) também acompanhamos uma busca similar sobre outra mulher enigmática, Anne-Marie Stretter (Delphine Seyrig, que também atua em Vera Baxter mas em um papel bastante diferente), que permanece inacessível durante todo o trajeto, sendo definida por vozes em off que falam sobre ela. Em Baxter, Vera Baxter há um processo um tanto similar, com os outros personagens falando sobre ela, às vezes até por ela, mesmo que seu ponto de vista também seja mostrado. 

Por essas conversas, se descobre então uma mulher para qual o casamento se tornou uma forma de prisão, resultando em uma espécime de prostituição para auxiliar o marido em seus negócios (impossível não lembrar de Jeanne Dielman de Akerman, também com Delphine Seyrig, que faz uma associação similar entre matrimônio e trabalho sexual). A questão de gênero, do papel da mulher em uma sociedade patriarcal, se mostra aqui presente dessa forma, com o sentimento de encarceramento da personagem sendo amplificado pelo fato dela nunca sair do mesmo local. Como de praxe em Duras, há aqui também um jogo de memórias, onde por vezes é difícil distinguir o que é verdade ou mentira (“mentimos muito”, diz uma das personagens em determinado momento do filme). Essa “confusão” adiciona ao elemento fantasmagórico do longa, reforçando a sensação de que estamos diante de uma outra realidade com diferentes regras. 

A contemplação torna o silêncio palpável.

Pode-se dizer que o cinema de Duras é essencialmente um cinema de fantasmas, de um passado ainda muito presente, atingindo o seu ápice nesse sentido com Son nom de Venise dans Calcutta désert (1976), onde a diretora reutiliza o áudio inteiro de seu filme anterior com gravações novas no mesmo local que se encontra no momento abandonado. As janelas quebradas e os móveis desertos aliados aos sons do longa criam um espaço assombrado por memórias do colonialismo. Apesar de falar muito sobre si mesma, Vera Baxter permanece ainda como um enigma (em uma entrevista sobre India song, Duras diz sobre a personagem de Seyrig: “eu não sei quem você é”, e de certa forma o mesmo pode ser aplicada a esse caso), e é um dos grandes acertos da diretora, de não querer revelar completamente a personagem, de deixar esse lado que a escapa intacto, pois Duras compreende que esse é parte do apelo da arte: sem o mistério não há atração ou interesse, ou como é dito por um personagem do filme, que só é capaz de se entender Vera Baxter através do desejo.

É curioso que o cinema de Duras seja colocado como algo estritamente “racional” e excessivamente intelectualizado, apesar dela lidar justamente com a imprevisibilidade dos sentimentos, sobretudo do poder violento que eles exercem nas pessoas. Os telefonemas de Le navire night (1979) e as trocas amorosas em Agatha e as leituras ilimitadas (1981) indicam justamente o oposto, isso sem mencionar sua obra literária, tão poderosa e devastadora quanto. Também é difícil imaginar como seus filmes seriam recebidos por uma plateia contemporânea, tão acostumada a estímulos visuais incessantes, onde nenhum segundo pode ser “desperdiçado”, tudo deve existir por uma razão, em prol de alguma coisa. 

A realizadora Marguerite Duras
durante a filmagem de “Baxter, Vera Baxter” (1977)

Essa ânsia por uma produtividade capitalista não se encontra nos filmes de Duras, mas sim justamente o contrário: observamos paisagens bucólicas as vezes por um longo período de tempo, os gestos e ações lentos dos personagens, quase que inertes. É desse, e de outros fatores, que o seu cinema se torna político, nessa tentativa de lutar com essa mentalidade, onde a ausência de um grande orçamento é utilizado como força motriz do filme, de criar outras possibilidades de se realizar filmes que possam respirar sem a pressão de um retorno financeiro imediato. Se trata evidentemente de um projeto quase que utópico, melhor explorado em outro filme feito por ela no mesmo ano, O caminhão (1977), mas por vezes é necessário criar utopias para seguir em frente. 

Como menciona uma das misteriosas personagens do filme, ao mencionar as mulheres que foram queimadas por falar com o mar e os animais, por retomar esse contato primário com a natureza, talvez seja essa a busca de Duras ao realizar filmes, de retornar a essa fase de conexão ao mundo que parece perdida a grande parte das pessoas atualmente. De poder sentar, escutar e ouvir sem se deixar levar por tantas inquietações e ansiedades modernas, de poder verdadeiramente desfrutar de algo. Talvez isso não seja mais viável, se desvincular dessa lógica produtivista, mas que bom que exista filmes como os de Marguerite Duras para nos lembrar que, apesar de tudo, outro mundo ainda é possível. 

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