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Críticas

Dançando no Silêncio

A dança como reconhecimento e exorcismo.

Por Yuri Lins | 04.05.2023 (quinta-feira)

Logo no início de Dançando no silêncio (Fra., 2022), as intenções do filme ficam evidentes em uma cena reveladora. Por meio de uma montagem paralela, é estabelecida uma relação entre a repetição obstinada dos passos das bailarinas durante um ensaio e os golpes agressivos desferidos em uma rinha de cabras. A jovem protagonista Houria ( Lyna Khoudri) é apresentada como alguém que transita entre esses dois universos tão diferentes: o mundo belo e laborioso da dança e o submundo das rinhas, no qual ela precisa participar para conseguir algum dinheiro.

Embora a obstinação e a violência estejam presentes em ambas as práticas, a justaposição das cenas não busca ressaltar a semelhança entre elas. O que se sobressai é a oposição entre um mundo feminino, repleto de possibilidades e de sonhos esculpidos a duros golpes de sapatilha, e uma realidade profundamente masculina e violenta, que ainda carrega os fantasmas da guerra civil da Argélia. Infelizmente, a reconciliação política não foi capaz de curar as profundas feridas de gênero daquela sociedade. Logo após Houria ganhar uma aposta na rinha, ela é vítima de uma violenta agressão por Ali (Marwan Zeghbib), um terrorista anistiado, que resulta na perda de sua fala devido ao trauma.

Houria dança em uma Argélia que ainda sofre os efeitos da guerra.

Após iniciar o tratamento, Houria se junta a outras mulheres que também sofreram traumas profundos e perderam a capacidade de fala. Juntas, elas formam um grupo de reabilitação no qual Houria conhece Halima (Nadia Kaci), que perdeu seus filhos em um atentado a bomba e vive em busca incessante por eles, e as irmãs Amel ( Meriem Medjkane) e Sana (Zhara Doumandji), que foram vítimas de escravidão sexual em um covil de terroristas. Até a mãe de Houria, Sabrina (Rachida Brakni), carrega a memória do assassinato de seu marido durante a guerra civil. Ao reconhecer que as histórias dessas mulheres representam as feridas profundas de sua nação, a realizadora Mounia Meddour faz do seu filme um espaço para que elas possam se encontrar, compartilhar suas experiências e finalmente exorcizar tudo aquilo que as condicionou ao silêncio.

Apesar de seguir uma estrutura narrativa convencional, em que a protagonista precisa confrontar seu agressor em um momento determinado, é na união entre Houria e suas novas amigas que reside a força do filme. A dança se torna o meio pelo qual Houria consegue superar a letargia de seu trauma e oferecer às outras mulheres uma nova forma de expressão. A gestualidade dos corpos ocupa o lugar da palavra falada e, mais do que promover a união entre as mulheres, a dança se torna uma linguagem capaz de expressar as fraturas do passado que ainda não se solidificaram no presente; e, como toda linguagem, ela possui palavras mágicas capazes de afugentar os demônios

A dança assume o papel da palavra silenciada, promovendo um espaço de identificação e união.

No entanto, a maior fraqueza de Dançando no silêncio reside no regime de encenação composto por Mounia Meddour. A câmera parece constantemente escapar do essencial, deslocando o olhar do espectador para fora do centro da imagem. Além disso, a montagem fragmenta a fluidez inerente de cada plano em prol de uma ideia falsa de estilo. Essa deficiência fica evidente no modo como Meddour filma os números de dança de suas atrizes, sempre tentando adicionar uma intensidade artificial que ofusca a dinâmica natural dos passos e gestos que elas empreendem arduamente em suas performances.

Dançando no silêncio é um filme que inquieta por sua disjunção: todo o universo que se organiza diante da câmera parece ter uma força pujante; as atrizes parecem excelentes e as coreografias parecem ser um ofício realizado com afinco. No entanto, apesar de todas as suas incandescências, tudo permanece reduzido a mera aparência, já que o olhar que os capta está mais interessado em agir como um difusor. Desse modo, não se pode afirmar com segurança se a realidade filmada corresponde de fato àquilo que é apresentado, uma vez que a percepção do espectador é afetada por um olhar viciado da realizadora. Ainda que Meddour almejasse fazer um filme pautado na evidência do movimento dos corpos, todo o seu manejo da forma cinematográfica contradiz as potencialidades dessa premissa.

A dança como um exorcismo do trauma.

Mounia Meddour não acredita na força que emana da própria realidade e, em vez disso, opta por deformá-la, criando um tipo de naturalismo de coqueluche. Ao não ser sensível o suficiente para crer naquelas que estão diante de sua câmera, ela perde completamente tudo aquilo que o cinema tem de melhor como ferramenta artística: a capacidade de absorver a vibrante expressão dos corpos, o tectonismo do rosto, os solilóquios dos olhos. O que resta é apenas uma representação de beleza postiça, onde  não faltam cenas de “poesia poética”: reflexos na lente, contra-luzes ao sol, mechas de cabelo ao vento, gestos carregados de simbolismo que existem apenas para maquiar o essencial, reduzindo-o a um enunciado. 

Ao final, Dançando no silêncio se assemelha a muitos outros filmes comerciais “de arte” exibidos nos cinemas brasileiros: apresenta boas intenções e temas importantes, mas de forma burocrática. Entretanto, mesmo com sua jornada marcada pela desconcentração, ainda persiste o interesse pelo que o filme poderia ter sido, pois há algo na periferia de suas imagens infladas que desperta curiosidade. As atuações, as dinâmicas de comunicação através dos gestos e as danças epifânicas continuam presentes, mas é necessário que o espectador complete em seu íntimo a permanência daquilo que o filme retrata como um índice de um mundo mais interessante e belo. Além das boas intenções, temas importantes e forma burocrática, Dançando no silêncio compartilha com outros filmes desse tipo uma característica adicional: é uma grande oportunidade perdida.

 

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