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Chantal Akerman: A imagem Incontrolável

Notas sobre a cineasta belga.

Por Davi Barros | 16.03.2023 (quinta-feira)

De acordo com Chantal Akerman, foi o filme O Demônio das onze horas (1965), de Jean-Luc Godard, que despertou seu interesse em se tornar cineasta. Em uma entrevista, a diretora afirmou: ‘Tive a impressão de que estava falando comigo. Era poesia”. Essa mesma sensação de se maravilhar ao assistir algo completamente diferente do que já foi visto é compartilhada por muitos ao assistirem os filmes da realizadora belga.

Embora possamos encontrar paralelos entre Chantal Akerman e outros cineastas de sua época, como Jackie Raynal e Wim Wenders, é inegável que seus filmes são únicos e inconfundíveis. Ao examinar sua filmografia mais de perto, não surpreende que tenha sido O Demônio das onze horas que a inspirou a explorar novas formas de fazer cinema, especialmente em relação à busca da liberdade diante da vida rotineira e enfadonha. Desde seus primeiros curtas, como Exploda minha cidade (1968), é possível perceber o espírito anárquico e rebelde que, ao longo de sua carreira, se manifesta de diversas formas. Esse espírito se transformaria um pouco mais tarde em um gosto pelo cinema experimental, sobretudo aquele do Michael Snow e Andy Warhol, e essa influência pode ser vista diretamente em O quarto (1972) e Hotel monterey (1973).

O quarto (1972). Experimento em 360°.

O tema do controle é recorrente na obra de Chantal Akerman, desde seu longa-metragem mais célebre, Jeanne Dielman (1975), que recentemente foi votado como o melhor filme de todos os tempos pela revista britânica Sight and Sound. Essa escolha gerou controvérsias, com muitos questionando a alta posição do filme como um sinal negativo de que a crítica estaria mais preocupada em avaliar um filme pela sua mensagem ‘política’ do que pelos seus méritos artísticos. Os posicionamentos expressos revelam que muitos não consideram ‘político’ o fato de filmes dirigidos por homens terem dominado essas listas por décadas, o que perpetuou um cânone predominantemente masculino.

Neste colossal filme, acompanhamos por três dias as tarefas domésticas de uma dona de casa viúva que também se prostitui. Chantal Akerman dá importância aos atos que geralmente são ignorados devido à sua banalidade, tornando-os memoráveis e transformando-os em uma espécie de odisseia. A busca silenciosa da protagonista por uma forma de ordem, pela manutenção do controle, resulta em tragédia. Ao contrário do que estava se tornando comum no cinema de sua época, Chantal evitava a psicologização de seus personagens. Esse elemento pode ser visto em Autour de Jeanne Dielman (1975), gravação dos bastidores de Jeanne Dielman no qual a diretora discute com sua atriz que procura entender as motivações que impulsionam a sua personagem, enquanto Chantal evita essa postura, pois quer dar uma leitura mais ampla para o filme. Para entender verdadeiramente sua obra, especialmente neste longa, é necessário esquecer as regras ou costumes cinematográficos hegemônicos e desenvolver um deslocamento do olhar e do gosto comum para compreendê-la.

Jeanne Dielman (1975). A rotina tem sua tragédia.

Essa busca por controle ganha novos contornos em um filme que ela realizaria mais tarde, A prisioneira (2000). Se em Jeanne Dielman não era necessária a presença constante de uma figura masculina, uma vez que ela pairava sobre todo o filme, nesse caso temos Simon (Stanislas Merharr), que, no que aparenta ser um gesto “romântico”, sente-se frustrado por não conseguir entender completamente sua namorada, Ariane (Sylvie Testud). Entretanto, logo essa busca por uma compreensão plena se transforma em obsessão e em uma forma dele tentar controlá-la.

Em uma das cenas mais marcantes do filme, observamos Ariane realizando um dueto operático da janela de seu apartamento com uma mulher que se encontra na janela de outra residência. Simon, estando na rua, presencia esse momento, esse o mundo completo de Ariane do qual ele jamais fará parte inteiramente. Não é surpreendente que a busca dele por entender, controlar e dominar Ariane resulte em tragédia, com ela desaparecendo e seu rosto estupefato. Afinal, tal tipo de trama já foi explorada de diferentes formas em Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock e De olhos bem fechados (1999), de Stanley Kubrick.

A prisioneira (2000). O olhar e o desejo.

Um primeiro olhar sobre a obra da diretora pode sugerir um cinema frio, distante e excessivamente intelectualizado, mas isso pode se dar por encararmos sua filmografia com os mesmos olhos que encaramos a maioria dos filmes. No entanto, Chantal oferece um novo tipo de cinema com suas próprias regras. Como ignorar a ternura das cartas que sua mãe envia em Notícias de casa (1977)? O desejo pulsante nas cenas finais de Eu, tu, ele, ela (1974); a canção de Aurore Clément em Os encontros de anna (1978); ou até mesmo as inúmeras carícias, abraços e danças em  Hotel das acácias (1982),Toda uma noite,(1982) e Os Anos 80 (1983), três dos mais belos filmes dos anos 1980. Mesmo em filmes aparentemente mais “impessoais” como Do leste (1993), Sud (1999) e Do outro lado (2002) há um evidente cuidado e carinho pelas pessoas que são representadas.

E se falamos de afeto em sua obra, é impossível não falar talvez daquele que seja o tema central em sua obra (se é que existe um): a relação da Chantal com sua mãe, Natalia Akerman, que perpassa a ficção e o documentário, se encontrando presente em quase tudo que ela fez. É também graças a sua mãe que Akerman explorará outro tema pertinente em sua obra, no que diz respeito aos judeus e o trauma imensurável deixado pelo holocausto, mostrado mais frontalmente em Dis-moi (1980) e Histoires d’Amérique (1989).

Notícias de casa (1977). O olhar imigrante.

A figura materna na obra de Chantal é uma figura de acolhimento e inspiração (como em Demain on déménage e Letters home), mas que também carrega suas próprias complexidades, como melhor evidenciado por Delphine Seyrig em Jeanne Dielman. Esse tema é predominante também em um livro que ela escreveu, My mother laughs, e em seu último filme, Este não é um filme caseiro (2015), que Chantal realizou em 2015, trágico ano em que tanto sua mãe quanto ela própria viriam a falecer. Pode-se dizer que é através do amor recíproco entre mãe e filha que se proporcionam alguns dos momentos mais bonitos e tocantes da obra de Chantal, e é desse amor que também nascem outros tipos de beleza em seus filmes.

Chantal Akerman ajudou a criar uma nova forma de se fazer cinema com sua rica filmografia, dando atenção à detalhes que passam despercebidos pela grande parte dos filmes, além de uma atenção única ao tempo, que se sente ao invés de o esquecer durante a projeção. Mesmo mais tarde, a influência do cinema experimental ainda perduraria em sua obra pelo resto de sua carreira. Curiosamente, ela realizou o que poderia ser visto como o oposto do tipo de cinema pelo qual é lembrada até hoje, ao fazer Um divã em Nova York (1996), uma divertida comédia romântica estrelando Juliette Binoche e William Hurt que recebeu críticas negativas.

Talvez uma realizadora tão radical como ela nunca seja completamente abraçada por todos, sobretudo pela crítica mainstream, mas isso faz parte da razão pela qual é um nome tão importante, influenciando cineastas como Claire Denis e Tsai Ming-liang. O poder dos filmes de Akerman é imensurável, graças à sua vontade de criar imagens que falem por si só. Como todo grande cinema, trata-se de uma obra tal qual Ariane é para Simon em A prisioneira: indomável, inclassificável e incontrolável.

Chantal Akerman (1950 – 2015)

[Nota do editor]

Uma mostra retrospectiva, exibindo sete filmes de Chatal Akerman – sob curadoria de Davi Barros, autor do artigo acima – iniciou ontem (15) no Cineclube Ventura, no Bacharelado em Cinema e Audiovisual do Centro Universitário Aeso Barros Melo – Uniaeso. Os títulos serão exibidos até 30 de março conforme a programação abaixo.

O acesso é gratuito e as projeções acontecem no Cineteatro da instituição de ensino, localizada na Av. Transamazônica, 405, Jardim Brasil II, Olinda, PE.

Confira a programação:

ontem (15/3)
 12h40: Exibição dos filmes Saute ma ville (13 min) + Je, tu, il, elle (86 min) = 99 min
14h19: Introdução ao cinema de Chantal Akerman e debate sobre os filmes exibidos.

hoje, quinta (16/3)
 09h25: Exibição do filme Jeanne Dielman (202 min)
12h45: Debate sobre o filme, considerado o melhor de todos os tempos.

 Quarta-feira (22/3)
 11h00: Exibição dos filmes Hôtel Monterey (65 min) + News from Home (85 min) = 150 min
13h30: Debate sobre os filmes exibidos

 Quinta-feira (23/3)
 11h30: Exibição do filme Les rendez-vous d’Anna (128 min)
13h40: Debate sobre o filme exibido

 Quinta-feira (30/3)
 11h45: Exibição do filme Toute une nuit (90 min)
13h15: Debate sobre o filme exibido

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