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Críticas

Pobres Criaturas

Moderna monstra liquidificada

Por Luiz Joaquim | 30.01.2024 (terça-feira)

Aqui está um filme que você verá. Talvez não nesta semana de sua estreia no Brasil (1º de fevereiro). Talvez não na semana posterior, mas certamente em algum momento no futuro. E lá verá porque, até lá, haverá sido estabelecida uma espécie de folclore sobre Pobres criaturas (Poor Things, Irl./RU/EUA, 2024), dirigido pelo grego Yorgos Lanthinos. O folclore do filme perfeito, irretocável, incontornável. Mas é só folclore.

A pauta feminina na sociedade o terá quase que constantemente presente como ilustração da trajetória da mulher num mundo masculino em direção ao seu lugar de igualdade e liberdade. Dissertações e teses ao redor do mundo irão destrinchar, frame a frame, a personalidade de Bella Baxtex (Emma Stone, protagonista e produtora) como exemplo perfeito do sofrido percurso que as mulheres passaram e ainda passam em busca de respeito e autoridade sobre o seu próprio corpo. A lista não termina.

E o sucesso de Pobres criaturas está em administrar todas essas e outras questões de maneira humorada a partir do fantástico enredo adaptado (por Tony McNamara) do romance de Alasdair Gray, lançado há cerca de 30 anos.

Nele, o renomado cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe, sob maquiagem frankensteiniana que durava quatro horas para ser concluída e duas horas para ser retirada) toca experimentos secretos em seu laboratório envolvendo a anatomia animal, incluindo a raça humana, e um de seus projetos mais sofisticados é Bella. Uma jovem que tentou o suicídio – sabemos na primeira imagem do filme – e foi reanimada por Godwin, ou apenas God (Deus), com o cérebro de um recém-nascido.

Godwind, ou apenas God (Dafoe): quatro horas de maquiagem.

Em outras palavras, o que acompanhamos é uma jovem inicialmente se movimentando e se expressando como um bebê de 2 anos de idade que vai evoluindo rapidamente de modo que, em pouco mais de um ano ela já terá sido dona de seu próprio destino, estudando medicina e casada com o homem que escolheu para si.

Estamos na Londres do século 19 e o personagem que representa os nossos olhos, o do espectador que irá descobrir a criatura Bella, é o do estudante de medicina Max (Ramy Youssef). Ele vai auxiliar seu ídolo Godwin em seus experimentos e observar a evolução de Bella.

A entrada do advogado Duncan (Mark Ruffalo, tirando onda e se aventurando num personagem fora da curva de sua carreira) bagunça tudo, no melhor sentido pois, ele será o ticket de Bella para conhecer o mundo. Duncan quer se aproveitar da jovem e linda inocente Bella levando-a a uma viagem por uma Lisboa futurista, que terá sequência num cruzeiro para Atenas e depois Paris.

A saída de casa, deixando God para trás, já é um primeiro movimento de ruptura. A essa altura, Bella já descobriu a masturbação (com uma maçã e uma banana) e se orgulha disso. Hollywood se masturba? Sim, há muito tempo, mas personagens femininas a vontade com isso não são vistas com tanta facilidade.

A absoluta amoralidade de Bella com relação ao sexo a impede de agir conforme os preceitos da boa conduta social – afinal, ela age, agora, como uma adolescente que acaba de descobrir o prazer e o busca o tempo todo com o seu amante. Duncan, a propósito, logo logo perceberá, para a sua frustação masculina, que nesse campo é ela que o domina, não ele.

Bella (Stone) e Duncan (Ruffalo): quem domina quem?

Não tarda e, na proporção em que Bella descobre as diferenças do mundo fora de sua bolha – encarando a filosofia, a miséria a maldade humana, os fetiches sexuais -, essa mulher-frankenstein vai tornando-se mais e mais uma mulher-humana. A frente do seu tempo, claro.

O artifício criativo que combina a constante postura infantil e desengonçada de Bella Baxter com a sua falta de pudor para ser amarga e comicamente sincera em qualquer contexto social, mesmo já dotada de um sofisticado intelecto adulto, é a chave perfeita para girar a porta e fazer entrar no enredo as possibilidades da emancipação feminina. E isto de forma divertidamente zombeteira.

Pobres criaturas não é só um acertado produto discursivo para o seu tempo (o hoje). E, ainda que cansativamente orgulhoso de si próprio, o que o torna destacável é também a sua suntuosa capacidade visual e sonora (com a trilha distorcida de Jerskin Fendrix) ambas envolventes e e igualmente provocadoras para os padrões do cinema standard norte-americano. Mundial, diríamos, se pensamos no primeiríssimo e recatado canal de difusão de produções como estas: os multiplex.

No Reino Unido, por exemplo, uma sequência em específico foi retirada do corte final do filme. Ela está (e pode ser vista na versão brasileira) quando Bella janta num restaurante e, irritada com o incessante choro de um bebê na mesa ao lado, levanta para ir esmurrá-lo e parar com o incômodo.

Para além desse ultraje em forma de incoerência social, Pobres criaturas estampa muitas e divertidas cenas de sexo e nu frontal das megaestrelas Stone e Ruffalo. É uma grau de exposição no mínimo inesperado, na altura da carreira desses nomes.

Bella (Stone) e os prazeres (e fetiches) da carne.

Stone, a propósito, aposta tudo aqui neste papel de uma vida. Algo equivalente a um Edward mãos de tesoura mas que aposta em algo além do entretenimento. E essa aposta, como dissemos na abertura desse texto, deverá ser alcançada.

Numa das sequências mais espertas que sintetiza a superioridade e autonomia conquistada por Bella sobre a idiotia possessiva do amante Ducan, com este já colérico de ciúme da sua cria agora independente, coloca a moça na seguinte situação:

Num cruzeiro, Duncan a encurrala na parede e diz que se ela não o obedecer ele vai jogá-la no mar, para ouvir da moça, olhando nos seus olhos, impávida e genuinamente querendo compreender a situação: “Então… você que casar comigo ou quer me matar?”.

O contraste absurdo da dúvida infantil só reforça a infantilidade daquele secular comportamento masculino e a resposta para tal pergunta sem resposta é o silêncio: uma das mais eloquentes ferramentas do cinema.

Fica também a provocação: Só pelo corpo de um monstro (ou de uma boneca cor-de-rosa) que Hollywood consegue produzir sua mais moderna expressão de liberação feminina? Claro que não. Estas são apenas algumas de muitas.

Que venham as infinitas teses sobre o tema Bella Baxter para o bem da evolução social. E não esquecem de agradecer ao cinema.

Em tempoPobres criaturas concorre ao 96º Oscar 2024 – cerimônia dia 10 de março – em 11 categorias: Filme, Direção, Atriz, Ator coadjuvante (Ruffalo), Roteiro adaptado, Trilha sonora, Design de produção, fotografia, Cabelo e maquiagem, Figurino, Montagem.

 

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