Walter Hugo Khouri – 20 Anos Depois
Donny Correia aponta a real dimensão de Walter Hugo Khouri, vinte anos após sua partida.
Por Donny Correia | 27.06.2023 (terça-feira)
— Na imagem destacada, Walter Hugo Khouri durante as filmagens de ‘As filhas do fogo’, em 1978 (Foto: Acervo família Khouri)
No último dia 19 de junho, o cinema brasileiro completou 125 anos de uma existência marcada pela ancestral dificuldade técnica e pelo loteamento de seu mercado por distribuidoras internacionais, que fazem, até hoje, dessa manifestação de nossa cultura um verdadeiro exercício de paciência e perseverança. Sem dúvida, uma data para ser largamente homenageada.
Mesmo assim, as entidades midiáticas, mais uma vez, optaram, em sua maioria, por reverenciar o cinema nacional recuperando um cânone estabelecido há décadas, que parece não se alterar, a despeito dos esforços de novos pesquisadores para resgatar momentos menos incensados e pouco valorizados nessa história. Pergunto-me as razões pelas quais a este cânone não se pode somar uma espécie de “paidêuma”, uma releitura sincrônica de obras e diretores tão significativos quanto os mais conhecidos. Sem dúvida, se existe o cânone, ele deve ser reverenciado porque encerra valores inestimáveis ao desenvolvimento da fatura cinematográfica no Brasil. Porém, não seria hora de ressignificar algumas poéticas que foram se perdendo ao longo do tempo?
O cineasta paulista Walter Hugo Khouri, nascido em 1929 e falecido em 2003, forma, junto a Luiz Sérgio Person e Roberto Santos, o triunvirato do novo cinema paulista – se quisermos usar um termo didático a exemplo do Cinema Novo, que concentrou sua base orgânica no eixo Rio-Bahia – e é destas figuras que, ao longo do tempo, teve sua imagem esmaecida no círculo de pesquisas e estudos sobre o filme brasileiro. Talvez, a conhecida celeuma judicial envolvendo o filme Amor, Estranho Amor (1982) e os representantes da atriz e apresentadora Xuxa Meneghel tenha minado pouco a pouco a carreira do diretor em sua fase final, nos anos 1980 e 1990, mesmo que ele nada tivesse a ver com a disputa, já que o filme pertencia a seu produtor. Creio que tal fato tenha sua cota de responsabilidade para que a poética de Khouri, composta de 25 longas-metragens, um curta e uma codireção, realizados entre 1953 e 1998, fosse menosprezada em muitos momentos.
Recuperemos um pouco dessa trajetória, para apontar a real dimensão de Walter Hugo Khouri, vinte anos após sua partida.
O cineasta nasceu em São Paulo, mas passou uma fase de sua juventude no Rio de Janeiro, na casa de seu avô materno, onde tomou contato com a literatura, as artes visuais, a música erudita e o cinema. No início da vida adulta, chegou a cursas dois anos de Filosofia na USP, mas se desinteressou do que considerava raso e reacionário tanto nos professores quanto nos colegas. Na mesma época, sendo um cinéfilo inveterado e com sólido repertório, apesar da idade, conseguiu um emprego como assistente de direção na Companhia Cinematográfica Vera Cruz, projeto faraônico de cinema industrial paulista. Entre as funções de segundo assistente de direção para Lima Barreto nas filmagens de O Cangaceiro (1952) e o contato travado com profissionais do meio que o estimulavam a debutar na direção de longas, Khouri realizou uma experiência juvenil, O Gigante de Pedra (1953), filme que revelava certa imaturidade estética e técnica, mas que chamou a atenção da mídia de sua época. Quando exibido na programação do Festival Internacional de Cinema do Quarto Centenário, em São Paulo, no comemorado ano de 1954, algumas publicações saudavam aquele que consideravam uma promessa para o futuro do cinema brasileiro. “Despedíamos de Walter Hugo Khouri confiantes de que tínhamos conhecido uma das maiores esperanças da nova geração de cineastas brasileiros”, relatava uma reportagem de Cena Muda, publicada em 3 de março de 1954, a respeito do evento.
Daí por diante, Khouri se envolveu com o cenário profissional do cinema e da crítica. Passou a dirigir programas do teleteatro da TV Record e a publicar artigos no jornal O Estado de S. Paulo. Foi ele quem apresentou ao público brasileiro a obra de Ingmar Bergman, quando o sueco passava a ganhar espaço fora de seu país. A segunda experiência com cinema só viria em 1958, Estranho Encontro, produzido nas rebarbas da falência da Vera Cruz, que passou a se chamar Brasil Filmes. A obra apresentava pela primeira vez um estilo que Khouri cultivaria e aprimoraria ao longo dos anos seguintes. A trama, que envolve relações humanas contaminadas por interesses utilitários, fez com que o filme fosse alçado a uma das melhores obras do cinema nacional até então e abriu caminho para que seu diretor passasse a produzir com maior regularidade. Seguiram-se Fronteiras do Inferno (1959), drama de ação passado num garimpo, e Na Garganta do Diabo (1960), épico ambientado na Guerra do Paraguai, que transita entre a exuberância da paisagem das cataratas de Iguaçu e o intimismo de personagens assolados pelo tédio em terras inóspitas.
Em 1963, estreia A Ilha, filme que marca o início de um ciclo maduro e focado na elite de uma São Paulo hedonista e cínica. Embora a crítica tenha apontado problemas que o próprio Khouri reconheceu, dadas as dificuldades logísticas de produção, o sucesso de bilheteria abriu caminho para aquela que seria sua obra mais celebrada, Noite Vazia (1964), um drama de câmara que envolve apenas quatro personagens trancados num apartamento em busca de prazeres que se transformam numa torturante relação de forças que envolvem dinheiro e sexo.
Com a consagração do filme, veio a crítica. Se por um lado alguns formadores de opinião entendiam bem a ironia do filme, que ataca a prepotência do indivíduo que contamina uma sociedade, por outro, o núcleo duro do Cinema Novo passou a disseminar a ideia de que Khouri era um alienado, um imitador de Bergman e Antonioni, um cineasta pernóstico, sem consciência de classe. Não souberam, ou não quiseram observar a fina linha que separa as mazelas sociais das ações individuais por parte de certa esfera social.
Tal disputa pela alma do cinema nacional só fez Khouri investir num estilo pessoal, que se intensificaria no hermético e poético O Corpo Ardente (1966) e em As Amorosas (1968), este último baseado numa antiga ideia sobre um rapaz deslocado de seu meio, questionador e desiludido com o mundo. O filme veio como resposta aos discursos revolucionários e apresentou ao espectador a primeira versão do personagem Marcelo, espécie de avatar que falaria em nome do diretor em muitos de seus filmes futuros.
É claro que a fidelidade khouriana a um cinema de atmosfera, cada vez mais intimista e, muitas vezes, cerebral, custou ao diretor um período de baixa em sua popularidade junto ao público. Como Khouri considerava mais importante continuar filmando, a despeito das condições gerais, passou a realizar obras cada vez mais pessoais e sempre com poucos personagens, prezando por uma estética do silêncio, dos olhares ricos em discursos mudos e da beleza de suas atrizes, fotografadas como se fossem esculturas gregas – muito diferente da nudez que alimentava as comédias e dramas eróticos da Boca, no mesmo período. São desta fase obras como As Deusas (1972), O Último Êxtase (1973) e O Desejo (1975), tríade a que chamo “Trilogia do Abismo”, por investir nas relações diretas de dois ou três personagens encerrados em espaços intimistas, questionando e remoendo calos relacionais incuráveis. É a fase em que Khouri examina a imensa cratera existencial da classe burguesa, expondo a hipocrisia, a alienação e as obsessões que resumem a condição humana. Também é quando o próprio cineasta passou a reconhecer que se tornara um “veneno de bilheteria”, já que a crítica exaltava sua destreza estilística, mas o público não compreendia seu discurso.
Entre um trabalho pessoal e outro, Khouri se envolveu em produções de gênero, esperando capitalizar novamente nas bilheterias. Dirigiu dois filmes de terror que transitam entre o psicológico e o sobrenatural, O Anjo da Noite (1974) e As Filhas do Fogo (1978). O publicou reagiu ainda de forma tímida.
Somente com O Prisioneiro do Sexo (1978), O Convite ao Prazer (1980) e Eros, O Deus do Amor (1981), realizados com apoio de produtores da Boca, é que Khouri recuperou seu prestígio nos borderôs enquanto a crítica oscilava a respeito de suas concessões. No entanto, havia unanimidade sobre Eros. Nele, via-se sua obra mais madura e intensa desde Noite Vazia. Um filme experimental, que colocava o espectador na pele de Marcelo. Não mais o jovem rebelde de As Amorosas, mas um homem de negócios, vivendo a meia-idade, assolado pelas memórias de infância e o desejo de ascese por meio das amantes que coleciona.
Em seguida, veio Amor, Estranho Amor (1982), que se não fosse pela polêmica que geraria anos depois, poderia ter sido visto como o que de fato é: um drama histórico, passado às vésperas do golpe do Estado Novo, em que o sexo se torna moeda de troca na política do Café com Leite, enquanto um garoto descobre quão perverso é o mundo dos adultos.
Ao longo da década de 1980, o cinema brasileiro passou por uma crise crescente que culminaria no fim da Embrafilme, na diminuição do número de filmes produzidos e no esgotamento de velhas fórmulas. Nesse período, Khouri também oscilou significativamente. Seu Amor Voraz (1984) não foi bem recebido e deu margem a novos questionamentos sobre a forma da poética khouriana. Por seu turno, Eu, de 1987, é até hoje uma das maiores bilheterias da década.
A partir dos anos 1990, entre a morte do cinema brasileiro e sua retomada, Khouri já se encontrava física e emocionalmente fragilizado. Produziu Forever (1991) a duras penas. O filme despertou pouco interesse. Em 1995, na aurora de tempos melhores para o filme nacional, recuperou um antigo curta que estava pronto e engavetado havia cerca de quinze anos e realizou As Feras. A obra só seria lançada em 2001, após problemas de entendimento entre diretor e produtor. Infelizmente, quando As Feras chegou aos cinemas (apenas duas salas de pouca visibilidade, em São Paulo), o público já não aceitava um modelo considerado ultrapassado. E este problema assolou não somente Khouri, mas outros cineastas que aguardavam numa longa fila a oportunidade de lançarem suas obras congeladas desde 1990, pelo menos.
Em 1998, o diretor lançou o último longa que dirigiu, Paixão Perdida. Neste trabalho, mais intimista e minimalista do que nunca, vemos não somente um Marcelo já mais velho e esgotado, mas também um diretor adoentado e frágil, lutando para continuar fazendo o que sabia de melhor, sempre com as mínimas condições possíveis. Embora melancólico, o filme é belo e, hoje, mostra que a poética khouriana se encerrou de forma condigna, com coerência e amor pelo ofício. Khouri faleceu, vitimado por um enfarto, às cinco horas da manhã do dia 27 de junho de 2003, deixando ao menos dois roteiros inéditos e várias ideias rascunhadas.
Desde 2019, tenho pesquisado o acervo do diretor, hoje resguardado por sua família, em busca de uma releitura que redima a importância de Walter Hugo Khouri no contexto histórico do cinema brasileiro. Da vasta documentação que compõe seu acervo, saltam registros detalhados de cada filme que realizou, anotações, roteiros, desenhos, ideias e proposições, que em breve serão trazidas a um novo público, que deve conhecer seu passado artístico para compreender e apreciar seu próprio cinema.
A Cinemateca Brasileira prepara uma retrospectiva do diretor para agosto de 2023, quando as raras imagens de O Gigante de Pedra, parcialmente perdido, serão exibidas, mais de vinte anos depois da última mostra dedicada a Khouri. Também serão exibidos, em 35mm, vários filmes da fase áurea do diretor. Outras ações e exposições também estão por vir.
Assista à live do canal “Uma Teia de Ideias”, dia 28 de junho, às 19h, sobre a vida e obra de Khouri, com informações exclusivas, no link https://www.youtube.com/watch?v=w_6_WOtVl8k
Donny Correia é mestre e doutor em Estética e História da Arte (USP), crítico e professor, membro da Abraccine e da ABCA, e especialista em história do cinema brasileiro, com ênfase na obra de Walter Hugo Khouri. É criador de conteúdo no canal Uma Teia de Ideias, no Youtube. Contato: donnycorreia1980@gmail.com
FILMOGRAFIA DE WALTER HUGO KHOURI
O Gigante de Pedra (1953)
Estranho Encontro (1958)
Fronteiras do Inferno (1959)
Na Garganta do Diabo (1960)
A Ilha (1963)
Noite Vazia (1964)
O Corpo Ardente (1965)
As Cariocas (2º episódio, 1966)
As Amorosas (1968)
O Palácio dos Anjos (1970)
As Deusas (1972)
O Último Êxtase (1973)
O Anjo da Noite (1974)
O Desejo (1975)
Paixão e Sombras (1977)
O Prisioneiro do Sexo (1978)
As Filhas do Fogo (1978)
O Convite ao Prazer (1980)
Eros, o Deus do Amor (1981)
Amor, Estranho Amor (1982)
Amor Voraz (1984)
Eu (1987)
Mônica e a Sereia do Rio (cenas em live action, 1987)
Forever (1991)
As Feras (1995)
Paixão Perdida (1998)
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