
Superman (2025)
Novo Superman mira o coração do herói clássico, mas esbarra nas exigências do universo expandido
Por Yuri Lins | 10.07.2025 (quinta-feira)

Para alguém que nasceu nos anos 90, é difícil imaginar o impacto de assistir, em 1978, ao Superman – O Filme de Richard Donner pela primeira vez, diante da promessa cumprida de ver um homem voar. Mais do que um feito técnico, o filme enfrentava o desafio de traduzir a fantasia dos quadrinhos para o mundo real, buscando uma verossimilhança entre o impossível e o crível, um equilíbrio delicado que até então parecia inalcançável. Até hoje, o longa preserva esse fascínio, talvez por representar uma época em que o cinema ainda dependia da engenhosidade manual, da criatividade prática e da invenção artesanal para construir seus efeitos, antes do domínio absoluto das tecnologias digitais. Isso leva a uma pergunta inevitável e urgente: como recriar, hoje, esse sentido profundo de assombro e encanto num tempo em que os efeitos visuais deixaram de ser milagres para se tornarem parte da norma, e em que o universo dos super-heróis, antes à margem do entretenimento, tornou-se o epicentro do cinema comercial, já mostrando sinais claros de fadiga e saturação? Com seu novo Superman, James Gunn parece buscar a essência emocional dos primeiros filmes do herói para responder a esta questão.
De início, é importante lembrar que, nos últimos anos, especialmente a partir da trilogia Batman de Christopher Nolan, os filmes da Warner/DC Comics adotaram uma abordagem marcada pelo realismo sombrio, buscando ancorar seus personagens em conflitos mais densos e dramas mais adultos — uma estratégia que, de um modo ou de outro, refletia a visão autoral dos diretores envolvidos. Zack Snyder, responsável por estabelecer o novo universo compartilhado desses heróis com O Homem de Aço e Liga da Justiça, acabou direcionando os filmes para um público adulto de forma equivocada. Esqueceu as crianças e os jovens — que, idealmente, deveriam ser o verdadeiro público dos super-heróis — e passou a agradar a uma legião de adultos infantilizados. Esse público, ávido por um entretenimento grandioso e sombrio, recebeu uma estética pesada e uma seriedade forçada que sacrificava a imaginação, o cartunesco e o sentido de encanto.

O novo Superman carrega a ideia de um bem que não hierarquiza vidas — um herói que age através de uma crença radical na humanidade.
Gunn, por sua vez, busca resgatar o espírito que Richard Donner cristalizou em 1978, apresentando um Superman que é um avatar do bem absoluto, para quem toda forma de vida importa, dos seres mais simples aos mais complexos. Esse bem não se limita a uma virtude abstrata, mas atua como uma força concreta que orienta suas ações e demanda cuidado, respeito e responsabilidade em relação ao outro. Não se trata de estabelecer hierarquias entre os seres, mas de reconhecer em cada existência um valor intrínseco, que não pode ser negociado ou reduzido. Mais do que a força física ou a capacidade de voar, o que realmente o define é uma fé inabalável na humanidade, uma confiança essencial no outro que atravessa suas escolhas e sustenta seu senso de justiça. Talvez seja justamente essa fé seu verdadeiro superpoder, aquilo que o torna símbolo de esperança e, ao mesmo tempo, revela sua maior vulnerabilidade, pois, diante do cinismo e da crueldade do mundo, essa crença no bem pode ser, paradoxalmente, sua verdadeira kryptonita.
Como ponto positivo do trabalho de James Gunn nessa nova empreitada, é possível afirmar que seu Superman, interpretado por David Corenswet, consegue expor com clareza essa faceta essencial do personagem. Corenswet encarna um herói que carrega a singeleza como traço de caráter; há nele algo de puro, luminoso, quase ingênuo, mas nunca ridículo. Um Superman que inspira confiança e que, mesmo diante da perda ou da incerteza, carrega consigo a escala de poder de alguém que é, afinal, o homem mais forte da Terra. Em alguns momentos, a imagem do personagem com a luz solar às costas se impõe quase como metáfora visual: o corpo banhado por uma força maior, orientado por um princípio de clareza e justiça que o define.
Esse tom mais ameno do Superman se estende também aos demais coadjuvantes e à própria constituição do universo. Estamos diante de uma Metrópolis onde seres superpoderosos convivem com a vida cotidiana das pessoas comuns, um espaço colorido e vibrante, povoado por personagens que, muitas vezes, parecem unidimensionais, quase caricatos. As batalhas acontecem nas ruas com uma energia desmedida, e o filme abraça uma miríade de elementos que, por vezes, beiram o excesso. É um tom decididamente cartunesco, que desafia o espectador a aceitar essa leveza como parte de um rehab contra décadas de realismo postiço.

Um estrangeiro entre nós: o filme aborda a condição de Superman como imigrante, alvo de discursos de medo.
Há também uma escolha estética clara por um texto que emula a linguagem dos quadrinhos. Os diálogos são francamente expositivos, mas dentro de uma lógica que os justifica: cada fala parece extraída de um balão de texto em uma página. Isso cria um ritmo particular, onde o filme aposta na velocidade e na imersão imediata. O espectador é jogado no meio da ação, sem preparação, como quem entra numa banca de jornal, pega uma revistinha e começa a leitura no meio da história. Nem tudo é compreendido de imediato, mas o fluxo segue; o prazer está na forma como as imagens, os personagens e os conflitos puxam o olhar para frente.
Nem tudo no filme de Gunn é nostalgia pura. Embora ele busque resgatar o espírito dos primeiros filmes, o diretor imprime sua marca pessoal ao estabelecer um diálogo com questões contemporâneas relevantes. A condição do Superman como um ser extraterrestre vivendo na Terra é tratada de forma direta: ele é, de fato, um imigrante, e o filme explora as implicações dessa identidade. Nesse contexto, o vilão Lex Luthor se posiciona como uma voz que mobiliza as massas a enxergarem o herói como um colonizador, uma presença estrangeira ameaçadora a ser rejeitada. Há também um olhar para questões mais amplas da geopolítica: em um momento central da trama, Luthor orquestra um conflito que, à primeira vista, remete à guerra entre Rússia e Ucrânia, mas que Gunn direciona com sutileza para o contexto entre Israel e Gaza — destacando a desproporção entre as forças e a postura firme do Superman ao lado dos mais vulneráveis. No entanto, apesar dessas sinalizações, o filme não se aprofunda nesses temas, que permanecem como breves menções superficiais. Em um mercado tão sensível quanto o das superproduções, essa contenção parece marcar o limite das ideias críticas que podem ser trabalhadas. O tom lúdico do filme, por sua vez, não justifica esse apaziguamento, especialmente porque, há décadas, os quadrinhos conseguem equilibrar essas duas dimensões, ainda que essa maior liberdade venha do fato de serem uma mídia de nicho.
O desafio de James Gunn vai além de construir uma boa aventura protagonizada pelo Superman: está em estabelecer as bases sólidas de um universo narrativo que se expandirá para outros produtos. Esse é um dos vícios centrais do cinema de super-heróis contemporâneo, modelo consolidado pela Marvel — da qual Gunn é um dos principais responsáveis — que transformou cada longa em um fragmento subordinado a uma estrutura maior. Contudo, algo inevitavelmente fica comprometido nesse processo. O filme frequentemente se desvia para acomodar referências, easter eggs e promessas de continuidade, operando muitas vezes sob a lógica do acúmulo. Cabe ao diretor, então, preservar a linha emocional e o pulso da aventura contada aqui e agora. Nem sempre ele consegue sustentar esse equilíbrio por completo, mas o esforço é visível, e isso importa. Ao final, o filme encontra seu caminho.

Nas ruas de Metrópolis, um herói que caminha entre pessoas comuns.
Que se faça mais um retorno ao Superman de Richard Donner: mesmo que em retrospecto, é reencontrar um tipo de fascínio que vai além do feito técnico de fazer um homem voar ou da engenhosidade artesanal daquele cinema. O que permanece com força é o prazer da contemplação, tanto do espectador diante daquele universo quanto do próprio personagem em sua travessia pelo mundo. Há algo na lógica do movimento, na verossimilhança cuidadosamente construída, que transforma cada gesto do herói em uma experiência sensível. Donner sabia pausar a narrativa para deixar que o olhar repousasse. Basta lembrar o momento em que Superman leva Lois Lane aos céus pela primeira vez, uma cena de suspensão e calma, em que a beleza não serve à ação, mas se justifica por si mesma. Era ali que se tornava possível imaginar o que seria, para uma criança, ser aquele homem — ou pelo menos tocar, por instantes, o sentimento de ser algo maior.
No filme de James Gunn, essa dimensão parece ausente. Há empenho, um personagem bem construído, um universo promissor, um horizonte de continuidade que instiga. Mas falta o tempo para contemplar, falta o silêncio entre os ruídos. No esforço de reger a cacofonia típica dos universos compartilhados, o filme abre mão desse espaço onde o maravilhamento se inscreve. O resultado é um longa que funciona, que estabelece as bases, que cumpre o que se espera, mas que não chega, enfim, a fascinar em um nível poético.
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