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Críticas

The Flash

A geração Z enfrenta desafios ao lidar com o trágico

Por Yuri Lins | 17.06.2023 (sábado)

— Este texto contém spoilers

Após enfrentar alguns fracassos recentes, como Adão Negro (2022) e Shazam – Fúria dos Deuses (2023), e passar por uma mudança na gestão empresarial com a venda para o Discovery Group, a Warner deposita grandes expectativas em The Flash (EUA, 2023). Isso é evidente pelo fato de o filme ter sido exibido em várias ocasiões antes do lançamento oficial, mesmo em versões não finalizadas, como uma estratégia para criar antecipação e sugerir que este poderia ser uma verdadeira obra-prima do cinema de blockbuster.

A experiência faz com que um crítico mantenha uma postura cautelosa diante de ações desse tipo, uma vez que a trucagem marketeira é evidente. Entretanto, as primeiras impressões positivas de The Flash durante sua exibição para convidados no evento “Cinema Com”, voltado para exibidores do mercado americano, despertaram minha curiosidade. Afinal, tendo apreciado recentemente filmes baseados em personagens da DC Comics, como Batman (2022), senti que valia a pena prestar atenção ao que estava em jogo no aguardado filme solo do velocista escarlate. Essa ingenuidade de principiante poderia ser minimamente justificada se The Flash gerasse algum sentimento além do inócuo.

“The Flash” é conglomerado de quinquilharias da cultura pop

Em The Flash, o personagem Barry Allen (interpretado por Ezra Miller) é atormentado pela perda de sua mãe e decide usar seus poderes de supervelocidade para voltar no tempo e mudar os eventos, na esperança de salvá-la. No entanto, essa tentativa de alterar o passado acaba tendo consequências drásticas no futuro. Barry encontra-se agora aprisionado em uma realidade na qual o vilão General Zod, de O Homem de Aço (2013), retorna e representa uma ameaça iminente de aniquilação mundial. Nessa nova linha temporal, o Super-Homem deixou de existir, levando Barry a buscar a ajuda de seu duplo nessa realidade alternativa: outro Barry Allen, porém sem poderes. Além disso, ele se alia a outros personagens diretamente extraídos dos arquivos das produções da DC Comics. Entre eles, está o Batman interpretado por Michael Keaton no filme de 1989, dirigido por Tim Burton.

Se afirmo que o filme é inócuo, é porque ele falha em despertar qualquer emoção além de um cinismo superficial e uma nostalgia genérica baseada na simbologia da cultura pop. The Flash depende fortemente de easter eggs, citações e referências para alimentar o saudosismo dos fãs. Infelizmente, a narrativa e o desenvolvimento do drama são pasteurizados, servindo apenas como desculpas para sustentar um universo repleto de revisitações simplistas do passado da marca DC Comics. O filme conta com inúmeras participações especiais de personagens de outros filmes e séries, porém, essas aparições acabam sendo apenas momentos de pose genérica, carregados de uma iconicidade burocrática que transforma a obra em uma mera vitrine de uma loja de brinquedos.

A Action Figure mais valiosa desta vitrine é, sem dúvida, o Batman de Michael Keaton. No entanto, é precisamente a  sua presença que evidencia a maior fragilidade de The Flash. Apesar de Keaton interpretar seu famoso personagem, o filme o utiliza de forma burocrática, deixando de explorar seu potencial além da mera representação de sua iconografia. É lamentável que Keaton seja reduzido a um boneco que repete frases de efeito nostálgicas pré-gravadas. Aqui inexiste a rica disjunção entre o comediante dos anos 80 e o personagem gótico dos quadrinhos, habilmente empregada por Tim Burton em  seus filmes como um vetor para a alegorização política – quem não se lembra da cena da parada em Gotham City no filme de 1989, onde o Coringa faz chover dinheiro, ou do Pinguim se candidatando a prefeito na sequência “Batman: O Retorno”?  -. Trabalho ativo do pensamento é algo completamente inexistente em The Flash.

Michael Keaton é subaproveitado em “The Flash”.

Mesmo mencionando um filme mais recente com o General Zod de O Homem de Aço, a referência parece amorfa. Michael Shannon reprisa seu papel como o vilão, mas dá a sensação de não estar verdadeiramente presente no filme. Talvez seja devido à fragilidade dos efeitos visuais que compõem sua armadura e máscara, ou à sua voz monótona que parece estar lendo um teleprompter. Fica a dúvida se há realmente um ator em cena ou se é apenas um boneco digital feito às pressas. A fúria e o ressentimento militarizado que Zod possuía em seu filme original não são manifestados em The Flash com tridimensionalidade ou nuances.

O ápice de The Flash ocorre justamente quando os tempos se colidem e diferentes mundos do multiverso da DC expõem personagens do passado, como o Super-Homem de Christopher Reeves ou Batman de Adam West, e até mesmo ideias que nunca foram concretizadas, como o Super-Homem que Nicolas Cage deveria ter interpretado em um filme cancelado. No entanto, essas aparições especiais são apenas sombras que fazem referência aos corpos originais, presenças que permanecem em risco em um passado repleto de filmes mais interessantes.

Que se faça um esforço para tirar leite do plástico. No meio de suas platitudes, The Flash busca abordar a impossibilidade de controlar aquilo que causa dor. O filme trabalha o tema da inexorabilidade do destino a partir do entrechoque entre o Barry Allen que, marcado por cicatrizes, volta no tempo para remediá-lo, e o seu duplo que habita a realidade onde o trauma não aconteceu. O Barry Allen desta linha alternativa acaba sendo a personificação da subtração de uma experiência dolorosa: o filme o retrata como uma caricatura da “Geração Z”, aquela que, nascida em um mundo tecnológico, é caracterizada por impaciência, histeria e dificuldade em lidar com o contraditório; uma geração que acredita que a morte é apenas uma ideia abstrata e de que o mundo precisa se dobrar aos seus gostos e necessidades.

O Barry Allen do futuro, ao viajar no tempo para remediá-lo, percebe ao longo da aventura a impossibilidade de suas tentativas de curar suas chagas. No entanto, ele também passa a reconhecer que cada indivíduo tem a capacidade de seguir em frente, amadurecer através de experiências negativas e desenvolver resiliência. Por outro lado, o segundo Barry experimenta pela primeira vez a verdadeira dor e a constatação inegável de que existem forças além de seu controle. Aqui, há o mesmo modelo de  narrativa mitológica que retrata a luta do indivíduo contra os deuses e contra o destino, onde, mesmo diante da inevitabilidade da morte, a perseverança persiste.

A geração Z e sua incapacidade em lidar com o trágico.

Acabo desenvolvendo uma simpatia em relação à análise que The Flash faz das novas gerações, que, devido às suas posturas inflexíveis, tornam-se incapazes de perceber a profundidade do trágico que permeia o cotidiano. Existe aí uma tragédia circunscrita a essa geração e que o filme utiliza  para questionar aspectos do contemporâneo. No entanto, mesmo com uma intenção questionadora, o próprio filme é um causador e um perpetuador daquele estado de coisas do qual critica.

O culto à nostalgia, a ausência de dialética e a preferência pela catarse pirotécnica em detrimento de histórias minimamente mais complexas são aspectos que esvaziam  o discurso de The Flash. Além do mais, o agressivo modelo de marketing e distribuição acaba condicionando o mercado cinematográfico a esse tipo de filme, o que acaba por mercantilizar e condicionar as sensibilidades humanas à superficialidade, a mesma que faz com que existam os tipos mimados e intransigentes como os Barrys Allens.

Andy Muschietti, nesse sentido, não se enquadra como um diretor contrabandista, alguém capaz de utilizar o próprio espetáculo para questioná-lo internamente. Sua abordagem de direção automatizada, sua total submissão ao produto midiático e a superabundância de símbolos da cultura pop em busca apenas de satisfazer um público sedento por momentos de gozo, transformam-no em um mero executor de tarefas que atende às expectativas preestabelecidas de seus patrões. Logo, o que resta do discurso é apenas o cinismo. 

P.S — Houve um momento em The Flash que realmente permaneceu comigo após o fim da sessão. Foi aquela cena em que Bruce Wayne decide aplicar rajadas de choques elétricos em Barry Allen para ajudá-lo a recuperar seus poderes. À medida que os choques se intensificam, Barry vai ficando visivelmente machucado e exausto. No entanto, por um breve instante, a câmera foca em Bruce Wayne com um sorriso no rosto, como se ele estivesse experimentando um prazer psicopático com aquela situação, quase apreciando a insanidade do momento. Esse sorriso trouxe à minha mente a imagem de Michael Keaton como Batman em 1989, um sorriso desvairado que exemplifica perfeitamente a disjunção entre o lado sombrio do personagem e o humor característico de Keaton naquela época. Foi um breve momento de clareza em meio à rotina do filme, um instante sublime que logo desapareceu, mas foi nele que pude vislumbrar novamente a mesma acidez, virulência e genialidade que o cinema americano  ainda era capaz de oferecer ao grande público:  You Wanna Get Nuts? Let’s Get Nuts!”

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