
29º Cine de Lima (2025) – Flor Pucarina
Cinema indígena feito por mulheres sobre mulheres
Por Ivonete Pinto | 11.08.2025 (segunda-feira)

Um cinema periférico dentro do periférico, assim é o cinema indígena praticado nos países cujos povos originários começam a fazer filmes com autoralidade, como é o caso do Perú. Com uma população de 34 milhões, quase 30% se considera indígena. Alguns dizem que o próprio conceito de indígena deve ser relativizado, pois há uma miscigenação tão grande que mesmo os descendentes de europeus, têm sangue indígena também. A segmentação, muitas vezes discriminatória, se dá por regiões. Povo desta ou daquela região, já pressupõe uma etnia determinada.
Os quéchua e os aymara representam a maioria de indígenas do País. São civilizações pré-inca com uma cultura vigorosa. Pois vem dos quéchua o filme que encheu a sala principal do 29º Festival de Cine de Peru, com Flor Pucarina, rebelde hasta los huesos (2025), exibido na Competição Peruana. O documentário é dirigido pela cineasta quéchua Geraldine Zuasnabar Ravelo, que trabalha com o coletivo de mulheres indígenas “Chola Contravisual”. O filme tem na equipe uma maioria de mulheres, sendo 100% delas na ficha técnica principal e cerca de 80% composta por indígenas, incluindo indígenas LGBTQIA+ e indígenas trans.

Cinema indígena no Peru: mulheres quéchua e aymara contam suas próprias histórias.
Com um discurso feminista e decolonial, a diretora Ravelo escolheu como tema de seu primeiro longa-metragem a vida da cantora quéchua Flor Pucarina. Uma artista que espalhou pelo país as canções tradicionais de seu povo. Sempre com figurinos altamente elaborados e coloridos, com destaque para os chapéus, e cantando músicas do gênero “rancheiro”. Assim buscava transmitir a identidade quéchua para onde quer que fosse.
O documentário é convencional, com base no formato cabeças-falantes. Através de entrevistas com músicos, produtores, apresentadores de rádio, familiares, fãs, vamos conhecendo a vida desta celebridade das décadas de 1960, 70 e 80, tendo como imagem de fundo, fotografias da mulher que cantava a tristeza andina.
E a triste constatação a que se chega é que este formato de documentário esteja tão limitado às entrevistas porque simplesmente não há imagens em movimento da cantora, exceto alguns frames, onde ela sequer está bem enquadrada. Embora sua importância e seu sucesso, nenhum arquivo ficou. Esta informação não está no filme, porém críticos locais admitem que as poucas emissoras que poderiam ter algum material (dois canais de TV), procediam sem qualquer preocupação de manter os registros. As fitas magnéticas eram apagadas para dar lugar a outras imagens. No Brasil este sistema também fez seus estragos, mas no Perú a perda deste período foi praticamente total. Além do que, conteúdo cultural e ainda por cima de origem de povos indígenas, menos ainda importava.
O resultado é uma lacuna na memória audiovisual relativa à Flor de Pucarina (gravações de rádio tampouco foram localizadas). Como a história dela é relativamente recente, a diretora, após anos de pesquisa a partir de recursos obtidos com um edital do Ministério da Cultura peruano, conseguiu depoimentos valiosos. Na plateia da sessão de estreia do filme, uma senhora veio vestida de Pucarina e foi longamente aplaudida também. Uma espécie de reconhecimento indireto.

A memória fragmentada de Flor Pucarina e a ausência de arquivos audiovisuais sobre a cantora.
O subtítulo de rebelde até os ossos é francamente defendido pelos depoentes. A cantora, cujo nome verdadeiro era Paula Efegenia Leonor Chávez Rojas falava o que queria, preferiu viver sem marido e nunca abandonou os shows para as populações pobres. Morreu aos … cantando a tristeza, traço que parece mesmo importante para os andinos. Nos vídeos de apresentação do festival repete-se a frase do poeta espanhol Federico Garcia Lorca: o Perú é feito de aço e melancolia (os recursos naturais, como o cobre, e as crises econômicas).
Flor Pucarina viveu apenas 52 anos, tendo morrido em 1987 em um hospital de Lima, vítima de uma infecção generalizada. Seu féretro, que aparece ao final do filme, não deixa dúvida quanto era popular. Milhares de pessoas acompanharam o caixão cantando e chorando.
Que uma mulher indígena recupere sua história e ofereça sua perspectiva para uma personagem tão relevante, é algo a ser comemorado. Se o filme vai estrear em salas comerciais de cinema, ainda não há resposta, mas é certo que vai circular e encontrar seu público. Inclusive no Brasil, que hoje promove dezenas de festivais e mostras indígenas e bem que poderia programá-lo.
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