
46º Nuevo Cine Latinoamericano (2025)
Um festival de cinema em um furacão de paradoxos
Por Cléber Eduardo | 09.12.2025 (terça-feira)
HAVANA (CUBA) – Estar no 46º Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, em Havana (La Habana). é necessariamente uma experiência muito além dos filmes. Havana é para espíritos fortes e sensíveis. A cidade é um paradoxo permanente e radical, com o espírito crítico aguçado e a autenticidade festiva de seus moradores, com belezas para sensibilidades abertas às noções mais amplas de beleza e com precariedades exasperantes de toda ordem (sobretudo para quem aqui vive). A umidade é extrema até a última gota de transpiração, o que afeta a percepção de quase tudo. Os frequentes apagões estragam as comidas, aumentam o calor pela interrupção de ventiladores e interrompem sessões do próprio festival. O cubano é um guerrilheiro existencial.
Os preços de restaurantes, mesmo os mais simples, estão nas alturas para os habitantes, se não fizerem parte da elite política, de comerciantes e de diplomatas. Para brasileiros de classe média, se conseguir um bom valor na troca de dólares por pesos cubanos (CUP), é um custo aceitável, caso fuja dos ambientes turísticos . Consegue-se no mercado clandestino trocar 1 dólar por 440 pesos. Se trocar em hotéis, 1 dólar sai 100 pesos. Livros e cinemas, por outro lado, são baratos ao extremo. A entrada para uma sessão custa 10 pesos. Com 1 dólar, pode-se ver 44 filmes. Livros estão em média 50 pesos. Compra-se de oito a nove volumes com 1 dólar. É o paradoxo hard-core.
Embora o bloqueio econômico seja uma realidade incontestável e causa considerável dos grandes problemas do país, a má administração econômica do governo e a ganância dos comerciantes nessa fase de privatização disfarçada, segundo os espíritos mais críticos, também têm sua responsabilidade nesse período de carências e de fome. Há pessoas catando restos de comida nos lixos de rua, o que, segundo dizem, nunca ocorreu antes nos últimos 66 anos. Uma epidemia de dengue só agrava o quadro. Nem tudo é falta, porém, muito pelo contrário. Em matéria de calor humano, disposição para o debate (sobre qualquer coisa) e bom humor, há até excessos. A bipolaridade é explícita.

CUBANOS: Desigualdade, calor humano e amor pela cinema. Foto: Cleber Eduardo
Nesse contexto, realizar um festival de cinema, que se espalha por sete salas da cidade, duas delas com mais de 1000 assentos (Yara e Chaplin), onde se exibem 93 longas metragens e 74 curtas latino americanos nas diferentes mostras, mais 27 longas de países de outros continentes (e dos EUA), é uma espécie de milagre socialista. Há competição de longas de ficção (12 longas), ópera prima (12 longas), documental (11 longas), curtas de ficção (11 filmes), curtas documentais (9 filmes), animação (18 curtas e 4 longas). Há ainda a recém criada mostra Otros Territórios, com 13 filmes mais experimentadores (7 curtas e 6 longas). E tem também uma competitiva de 34 cartazes de filmes. Esse ano foi programada uma retrospectiva com sete titulos do estúdio mexicano Churubusco e três filmes latino americanos restaurados. Tudo isso em 10 dias.
O Brasil está representado em quase todas as competitivas. Na de longas de ficção, com dois filmes, Agente Secreto (Kleber Mendonça Filho) e O Último Azul (Gabriel Mascaro). Na de ópera prima, com outros dois, A Natureza das Coisas Invisíveis (Rafaela Camelo) e Precisamos Falar (Pedro Waddington e Rebeca Diniz). Na competição de documentais, não há nenhum (por que será?). A maior representatividade brasileira está na de animação, com seis títulos: os curtas Como Nasce um Rio (Luma Flôres), Cultivando Resistência (Clara Albinati) e Safo (Rosana Urbes), e os longas Coração das Trevas (Rogério Nunes), Papaya, (Priscila Kellen) e Revoada – Versão Steampunk (Ducca Rios)
Na mostra Otros Territórios, não há nenhum brasileiro, o que chama atenção (por que será?). Competindo aos Prêmios Coral de pós produção para longas, estão A Noite é uma Farsa (Lucas Weglinski) e Ainda Hoje Marimbás (Diego Quinderé de Carvalho e Lourenço Parente). Na de curtas de ficção, são cinco, A Fera do Mangue, de Wara e Noan Silvam Shimon, Arame Farpado (Gustavo de Carvalho), Fale a Ela o que me Aconteceu (Pethrus Tibúrcio), O Amor não Cabe na Sala (Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira|) e Ponto Cego (Marcel Béltran e Luciana Vieira). Na de curtas documentais, compete com Alice (Gabriel Novis)

Catálogo do festival
Fora de competição, há seis longas brasileiros: Descontrole (Rosane Svartman e Carol Minem), A Melhor Mãe do Mundo (Anna Muylaert), Cinco Tipos de Medo (Bruno Bini) e Minha Terra Estrangeira (João Moreira Salles, Louise Botkay, Christyann Ritse Xener Paiter Surui, Gisabel Borba Leite e Ubiratan Surui), Lendo o Mundo (Catherine Murphy) e Múltiplos: Os Percursos Literários de Frei Beto (Evanize Sydow e Américo Freire). Outros cinco curtas estão fora da competição: Baixada: Nas àguas de Cubatão (Renato de Castro), Braço Forte (Rubens Fabricio Anzolin e João Fernando Chagas), Filme sem Querer (LK), Os Arcos Dourados de Olinda (Douglas Henrique) e Samba Infinito (Leonardo Martinelli). No total, são 28 filmes brasileiros. Da Argentina, são 32 títulos. Do México, 22 filmes.
Algumas sessões ficam bem cheias (acima de 600 pessoas). Outras, abaixo de 100 pessoas. Tudo depende do filme, de sua repercussão internacional, de seu elenco. Quando há cenas de humor, ouve-se ondas de risos e aplausos no meio da sessão. Há muitas pessoas negras nas salas. O cinema em Havana é popular, mesmo não tanto quanto já foi. A disponibilidade de filmes do mundo todo em canais do aplicativo Telegram e a necessidade de se trabalhar eventualmente em dois turnos têm deixado as pessoas mais em casa.

Salas como a Yara operam com capacidade para mil espectadores. Foto: Cleber Eduardo
O festival, como a cidade e o país, é um paradoxo, como já foi salientado. Seu nome se refere ao nominado Novo Cinema Latino Americano dos anos 60 e 70, cinema moderno político, barato e ousado formalmente, mas o festival nasceu em 1979, momento no qual esse novo cinema estava já mudando de tom e de formas, perdendo parte expressiva de sua radicalidade. Pode se alegar com boa vontade que, nesses últimos 46 anos, tentou-se atualizar, de modo nem sempre claro, as heranças do Nuevo Cine Latinoamericano. A programação valoriza, porém, não exatamente as ousadias, mas as repercussões internacionais, criando um panorama de candidatos a cânones contemporâneos da América Latina, com filmes exibidos em importantes festivais de Europa, EUA e Canadá. É um festival representativo do cinema que mais viaja pelo mundo. Como acontece em dezembro, faz um apanhado da temporada.
É curioso que, embora seja de recorte latino americano, há, nas competitivas, produções da Europa (Itália, Espanha, Bélgica, França), com participação minoritária de países da América Latina. Outro paradoxo. Isso não impede o evento de ser o maior ponto de encontro de realizadores e realizadoras dos diferentes países latino-americanos, embora, no caso de nomes mais estelares para a internacionalidade, as ausências sejam notáveis, como as de Kleber Mendonça Filho e Gabriel Mascaro. No ano passado, Petra Costa também não compareceu. O que importa no fundo e à frente é o acesso do público cubano aos filmes da região. Porque a sociedade ama a cultura e especialmente o cinema e, para nós brasileiros, ver um filme aqui não é como ver um filme em qualquer outro lugar. É entrar em um portal e levar parte dele consigo















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