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Como roteiros não devem ser lidos

Luiz Otávio Pereira reflete se existiria o filme “bem-dirigido” mas “mal-escrito”, ou vice-versa.

Por Luiz Otavio Pereira | 22.04.2018 (domingo)

Não são incomuns opiniões que responsabilizem o roteiro pela pouca qualidade de um filme. O contrário também não é raro: “aquele filme impecável com roteiro irretocável”. E afirmações do tipo “o filme é bom, mas o roteiro é fraco” ou “o filme é ruim, mas a história é até bem contada” parecem não soar estranhas. Jean-Claude Carrière abre um dos textos de seu livro A linguagem secreta do cinema com essa inquietação. Para o escritor/roteirista um filme é um todo realizado com mair ou menor êxito, com trechos decepcionantes ou empolgantes. Ele vai mais longe na provocação: “Não tenho a mínima ideia do tipo de monstrengo que poderia ser um filme bem-dirigido, mas mal-escrito”. Talvez alguém possa entender essa posição como uma tentativa de tirar o corpo fora, ou de dar destaque ao roteiro na realização de um filme, mas a operação pretendida por Carrière é exatamente no sentido oposto. Um roteiro pode parecer uma obra independente, mas ele só pode ser considerado bom se dele resultar um bom filme. Um roteiro pode ser “mal-escrito” e ainda assim ser bom, pois dele surgiu aquele filme com o qual você se maravilhou. Simples assim.

Mas, já que mencionam a possibilidade de um filme ruim contar bem uma história, a gente começa a entender que quando se referem ao roteiro na grande maioria das vezes estão se referindo a capacidade de um filme apresentar uma narrativa interessante e, talvez bem contada – seja lá qual a noção de história bem contada que as pessoas possam ter. Então, colocando de uma forma mais clara, são os roteiros de filmes eminentemente narrativos a sofrer com uma carga às vezes excessiva de responsabilidade. Por outro lado, filmes menos narrativos podem sofrer queixas por serem herméticos ou de difícil compreensão. Ambas atitudes podem ser entendidas como consequência do cinema ter se tornado hegemonicamente uma meio para contar histórias. Também porque narrar é uma das atividades mais básicas e ancestrais do ser humano.

Nesse sentido, um filme como Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, está mais passível de receber comentários, positivos ou negativos, sobre seu roteiro do que Brasil S/A, de Marcelo Pedroso – mesmo tendo sido premiado pelo roteiro no Festival de Brasília. O primeiro é um caso clássico – em vários sentidos – de cinema narrativo, com desenvolvimento de personagens, arcos dramáticos, divisão de atos.

Still do filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho

Brasil S/A, que tem o roteiro assinado pelo diretor Marcelo Pedroso, é um filme cujo encadeamento de ideias é apresentado de uma forma menos narrativa. Pelo menos se levarmos em conta uma estrutura narrativa clássica. Aquela que pede personagens bem delineados e apresentados, com situações dramáticas e conflitos definidos. Em minha experiência ensinando roteiro para alunos de Cinema e Audiovisual, eu teria dificuldades em usar Brasil S/A como exemplo. Dentro da grade curricular de um curso de Cinema, está bastante claro ao que se referem quando se fala em roteiro: uma escrita narrativa, que toma suas bases em uma longa história de estudos sobre como são as narrativas que vão da Poética de Aristóteles ao Monomito de Campbell, passando pelo formalismo e eventualmente adentrando no estruturalismo.

Mesmo assim, é possível dizer que Brasil S/A é um exemplo interessante de escrita para cinema. É um filme que mostra de uma forma clara uma visão sobre as transformações ocorridas no país nas últimas décadas. O sonho de um Brasil grande e rico a partir da produção de bens de consumo e todos as contradições geradas a partir desse sonho. Está tudo lá no filme, exposto a partir de imagens atraentes, com plasticidade, música grandiloquente, e certa ironia construída pela montagem. Do primeiro som à última imagem, a ideia por trás do filme é apresentada, remodelada, interpretada, deixando ao espectador possibilidade de construir um entendimento a partir dos elementos do discurso fílmico.

Quando vejo um filme, mais narrativo ou menos narrativo, não costumo pensar em como ele foi escrito textualmente, não me preocupo como roteiro – entendendo aqui o roteiro como aquela peça textual, escrita antes da produção propriamente dita do filme. Mas em geral, me preocupo em como ele é construído narrativamente ou, ao menos, dentro de sua própria lógica interna. E se eventualmente vier a ter acesso ao roteiro, ou descobrir como aquele projeto foi trabalhado em forma textual.

Depois de ter visto algumas vezes A Longa Caminhada (Walkabout), de Nicholas Roeg, deparei-me com a curiosa informação de que, apesar da duração de cerca de 100 minutos, o roteiro escrito por Edward Bond se estende por apenas 14 páginas. Diante do padrão de uma página de roteiro no formato Master Scene para um minuto de filme em tela seria possível dizer que é um trabalho “mal-escrito”?

Voltando ao filme de Marcelo Pedroso, a única coisa que me leva a pensar na escrita de um roteiro para o filme se deve ao fato prosaico de que Brasil S/A foi financiado por mecanismo públicos de fomento ao audiovisual. Para ter acesso a esses fundos, uma produção precisa atender certos requisitos previstos em editais. Um dos instrumentos mais importantes para essa seleção para filmes de ficção é o roteiro (ou o argumento, no caso de documentários). No mais, toda a escrita que importa ao filme, como produto final, está no próprio filme. Um comentário curioso sobre o filme parece ter relação com sua escrita: “gostei do filme, mas não sei se entendi tudo”. Acredito que por ser menos narrativo, ou melhor, por ser composto por pequenas narrativas visuais e simbólicas, com relações muito diretas com a realidade que pretende discutir, Brasil S/A é menos entendido como contando uma história do que por sua escrita propriamente audiovisual. Mas não nos enganemos, mesmo o filme mais narrativo tem uma escrita audiovisual. A história que ele conta não vai em separado, como um libretto para contextualizar o conteúdo da tela.

Um fato interessante de relacionar roteiro com produção e com financiamento público vem de uma queixa já antiga de que o audiovisual brasileiro tem uma defasagem justamente no desenvolvimento dessa parte textual da realização. Se o cinema brasileiro não consegue grande público, ou se não oferece tantas obras bem-acabadas para fazer frente a hegemonia hollywoodiana, é porque em algum momento existiu um desleixo com o uso do cinema para contar histórias. Isso nos leva ao surgimento de filmes cuja estrutura narrativa suga muito do que a televisão – ainda nossa forma audiovisual principal – costuma oferecer.

Ainda assim, o acesso aos fundos de financiamento para o desenvolvimento de roteiros é algo recente. Ou seja, durante muito tempo, o trabalho de roteirização só teria o aporte financeiro, necessário para qualquer atividade, depois de o projeto eventualmente ser aprovado. Aliás, essa realidade ainda se faz presente, basta perceber que os projetos aprovados nas chamadas de desenvolvimento de roteiro são em número inferior aos chegam a ser produzidos. E como vimos no começo do texto, os roteiros acabam sendo responsabilizados pela qualidade final do que é realizado.

Roteiros não são escritos sem antever um filme. Pelo menos não deveriam. Qual o sentido de escrever uma narrativa em um formato que não leva em conta a apreciação de um público? Porque não é para ser lido que roteiros são escritos. São lidos porque, a certa altura da realização do filme, esta é a única forma de se mostrar um filme. E um filme é feito para contar uma história, no caso de filmes narrativos, através de imagens e sons.

É curioso perceber que dentre os outros elementos individualizáveis do processo de criação de um filme, todos eles podem ser diretamente acessados no momento em que o filme é visto. A fotografia do filme está lá diante dos olhos, a direção de arte é igualmente mostrada, assim como o trabalho de som. Sem falar na montagem. Pouca gente lê, de fato, o roteiro de um filme. E, à sua presença no corte final somam-se as várias etapas e contribuições que acontecem normalmente durante a produção de qualquer filme.

Com isso, no entanto, não quero dizer que um filme não possa ser criticado por suas falhas narrativas, por diálogos pouco críveis e entregue de forma mecânica. Todos esses são aspectos que saltam à percepção quando se assiste a um filme. E, em alguns – ou muitos – casos, esses problemas estão presentes desde o roteiro. O que ocorre, lamentavelmente, é que roteiro muitas vezes é visto como algo que ele não é, uma porção de regras e técnicas que precisam ser cumpridas para se alcançar o objetivo final do filme.

Versão estendida do texto “Do que falam quando dizem ‘roteiro’?” publicado na Revista Cardamomo em novembro de 2016

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