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Festivais

8. Olhar (2019) – dia 2

Sobre a intrigante colagem “Não pense que vou gritar” e a eterna alegria de rever “Dançando na Chuva”.

Por Luiz Joaquim | 07.06.2019 (sexta-feira)

CURITIBA (PR) – Parte da importância (e do tradicional charme) do Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba está no desenho curatorial de filmes realmente intrigrantes que se esparramam por suas mostras. Faz isso de maneira competente, como todo festival de cinema deveria fazer, ou seja, apresentando novos talentos aos seus espectadores. Disponibilizando títulos provocadores que, provavelmente, nunca mais encontrarão janela no Brasil.

Foi exatamente pelo programa Novos olhares deste 8o Olhar, na noite de ontem (6), que aportou na capital paranaense o filme francês Não pense que vou gritar (Ne Croyez Surtout pas que Je Hurle, Fra., 2019), de Frank Beauvais.

Sua sinopse, por si só já é estimulante. Na verdade, sua estrutura é que estimula a curiosidade de amantes do cinema. Beauvais fez aqui algo, em primeiro lugar, apaixonado no campo da montagem cinematográfica. Todo o filme existe visualmente apenas e a partir de imagens sugadas dos mais de 400 filmes que assistiu na temporada – entre abril e outubro de 2016 – que passou em Alsace: isoladíssima cidade interiorana na França para onde foi em função de um romance que fracassou.

Então com 45 anos, Beauvais se viu cercado por uma exuberante natureza e distante de qualquer atividade social que lhe fosse familiar. 30 quilômetros de distanciava separava-o da mais próxima estação de trem. Sem amigos na região, sem habilitação para dirigir, enclausurou-se na casa e cercou-se de música e filmes. Estabeleceu uma rotina mínima para manter a casa em ordem e passou a ver, diariamente, quatro e cinco filmes por dia.

Para contar essa fase da vida, neste que é seu primeiro longa-metragem depois de ter assinado oito curtas-metragens, o cineasta decidiu não pegar uma câmera e gravar imagens ao redor, mas construir imaginários cenários, personagens e ações com um volume gigante de trechos destas centenas de filmes que catalogou cuidadosamente.

O resultado é bastante curioso e sedutor, mas também cansativo (particularmente se dependemos de legendas para acompanhá-lo). Isso porque em seus 75 minutos é a voz em off do diretor que nos conduz sobre as imagens. O tom é o de um confessionário, ou a de um diário, pelo qual sabemos o que se passava lá no fundo do pensamento de Beauvais durante aqueles seis meses, quando, inclusive viu o pai, com quem tinha cortado relações por anos, falecer em seus braços.

O tom é dramático, quase assustador, mas possuidor de uma fluidez narrativa literária elegante, própria do francês que é, em sua formação básica, íntimo de uma boa literatura. O encanto, portanto de Não pense que vou gritar está nesse casamento hipnótico no qual imagens alheias cobrem sentimentos absolutamente particulares, que olha para seu próprio interior e também para o mundo exterior, que enlouquece em paralelo.

A sandice do pragmatismo capitalista e a onda do terrorista mundial também invade a fala de Beauvais, uma vez que ambos eram algo muito presente naquele período, em particular pelo ataque promovido pelo Estado Eslâmico em julho de 2016, em Nice (FR), que deixou 86 mortos e 458 feridos.

Não pense… é filme para várias revisões. Surge como algo potente no sentido de nos fazer refletir a respeito de autoria e projeção de significados e significantes da imagem, isso para dizer o mínimo.

CLÁSSICOS – Não menor é a fama do Olhar por programar clássicos restaurados. O título que abriu o programa foi Dançando na chuva (1952), de Stanley Donan. Neste 2019, a Olhares Clássicos vem com 13 filmes (sendo quatro de Germaine Dulac); para conhecer todos os títulos, clique aqui.

A sempre deliciosa sessão deste filme numa sala de cinema foi apresentada ontem (6) por uma das curadoras do festival, Carla Italiano, que leu um lindo e inspirado texto de João Luiz Vieira – professor titular do departamento de cinema e vídeo da Universidade Federal Fluminense – escrito especialmente para a sessão daqui do Olhar.

João Luiz, como sempre gentil, nos autorizou publicar seu texto na íntegra aqui no CinemaEscrito.com. Leia e corra para (re)ver Dançando na chuva.

Por João Luiz Vieira, 2019.

Cantando na chuva, como o cinema e a arte em geral, pode ser apreciado de muitas maneiras, mas para mim há sempre o prazer inseparável de poder associar o intelecto com o sensorial, sem hierarquias, fundindo emoção e razão, tudo junto e bem misturado. Não é pouco!

Sendo um filme sobre o próprio cinema através da fantasia coreografada do musical, prestem atenção no que ele nos informa sobre a artificialidade do cinema na passagem do mudo para o sonoro, na paródia dos heróis do silencioso, na histeria das pré-estréias da Hollywood dos anos 20, nos tropeços técnicos dos primeiros filmes falados e sua sincronização capenga, e, principalmente, no deboche de uma cultura de elite feita pelos artistas populares dançarinos-sapateadores—em especial na sequencia onde a busca por uma pronúncia padronizada como perfeita acaba desconcertando um sisudo professor e transformando uma mesa de sala de aula em mais um palco impossível

Tudo isso através de interpretações carregadas de uma energia cômica contagiante—em especial no trio principal formado por Gene Kelly, Debbie Reynolds e Donald O’Connor, ou nos duetos coreografados entre Kelly e O’Connor—nas pinturas dos fabulosos cenários, no uso do Technicolor e suas cores exuberantes que saltam aos olhos e, claro, no ritmo e na coreografia das músicas que nos fazem, aqui no escuro da plateia, mexer com os pés lá embaixo e com os dedos nos joelhos ou nos braços das poltronas, em total identificação sensorial com esse mundo da tela. Terminando aqui: Cantando na chuva é um excelente exemplo da relação orgânica inseparável entre forma e conteúdo, entre linguagem cinematográfica e seus significados.

Gostaria muito de estar aqui hoje para compartilhar dessa emoção no meio de vocês, uma plateia privilegiada aqui de Curitiba, que poderá ver e rever em tela grande, uma indiscutível jóia do cinema musical norte-americano!

Curtam por mim e uma ótima e alegre sessão!”

* Viagem a convite do festival

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