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Festivais

9º Olhar (2020) – Agora (texto 2)

Um documentário até prova em contrário

Por Ivonete Pinto | 14.10.2020 (quarta-feira)

Assistir a Agora, de Dea Ferraz, é uma experiência que pode ser demasiado distinta para cada espectador. Neste formato streaming, então, possivelmente os que não têm algum interesse mais específico, desistam.

Na abertura, temos a tela que vai escurecendo até ficar preta, e o silêncio. Já nos primeiros minutos observamos que o filme pede uma tela de cinema, um dispositivo de cinema. Os atores-bailarinos vão entrando em um palco vazio e expressando-se através do corpo. Performance teatral. O filme continua pedindo uma sala de cinema.

O filme nos convida, nos convoca e nos provoca a uma fruição que envolve pensar em várias coisas enquanto vemos as imagens. E podemos recorrer inclusive a uma atitude de empatia,  quando é preciso uma reverência à equipe  que se esforçou para realizar a produção e veio a frustração da pandemia, com ela a decisão difícil de estrear online mesmo assim?

Quantas noites mal dormidas, quanta discussão em torno do conceito, dos desafios orçamentários. Da nossa cômoda distância e cômoda cadeira de espectadores, os movimentos  e esgares dos atores em um palco ficam mais distantes. Eles têm dificuldade de respirar, eles sofrem. Se fosse em um teatro, isto seria mais perceptível.

Syd Field iria se virar no caixão ao ver que aos dez minutos, quando já deveria ter um ponto de virada, nada aconteceu ainda. Com algum esforço, até é possível enxergar uma narrativa em meio aos momentos solo dos personagens no palco, sendo dirigidos por uma voz de mulher. Ela propõe que eles façam movimentos com o seguinte contexto: agora, neste país, o que este corpo sente, aonde este corpo quer estar? E então não há dúvida de que estamos diante de um ato político e há quem queira se enfiar em um buraco.  No desempenho dos 13 personagens no palco, há um desespero de intensão variada.

Still de “Agora”, crédito de Chico Ludermir

Mesmo quando não conhecemos os códigos da dança, é possível observar a performance dos bailarinos e sentir, percebê-los discursando. Pensando, gritando, reclamando, exprimindo a dor física e a dor da alma,  só com os gestos. A linguagem do cinema tem seu papel ao aproximar a lente no momento exato da fúria do olhar. E a trilha sonora entra orquestradamente  para também ser narrativa e completar o que o espectador estava intuindo. E então o filme tem algumas viradas, sim, quando somos confrontados com outra linguagem, a da palavra. A palavra que representa tão bem um cinema tão diametralmente oposto quanto a de um Manoel de Oliveira. E depois entra em cena, no mesmo palco, a pintura sendo criada tendo a mesma orientação da voz feminina (a diretora?). As intersecções cada espectador viaja nas suas. Podem ir de um sistema acadêmico, como de Oliveira, até um Abbas Kiarostami (sobretudo Five) Melhor ainda o cinema experimental de Maya Deren, corpos pretos, corpos brancos, transcendendo, usando a dança e a poesia como motores.

O filme todo é muito desafiador e, como já dito, não é cinema para qualquer  paladar. A extensão da duração pode resultar em uma imersão torta, através de um meio não ideal.

Não sabemos bem o que Agora é, porque poderia fazer sentido em outros momentos históricos também. Sempre haveremos de nos sentir perdidos, arrasados. A humanidade, e nesta parte geográfica dela, sempre teve e terá seus perrengues. Agora é mais urgente, claro, mas intui-se que se trata de um filme atemporal apesar do seu título.

Talvez não seja universal, já que um dos temas (o tema mais contundente), o racismo, não seja o problema que é numa sociedade escravocrata como a nossa. E neste tema a narrativa volta a ganhar a fala, através do discurso. Discurso no sentido solene, que transforma o palco em tribuna. Aqui a forma titubeia, pois precisa dialogar com outra forma de expressão, como o simples nariz do palhaço que uma personagem veste e que significa tanto.  Tudo, ao fim e ao cabo, é um sonoro  grito da classe artística, em que este nariz de palhaço expõe seu múltiplo sentido.

Talvez (há sempre um talvez…) a chave para entrar no filme, sem nos entediarmos ou vermos a proposta como mero experimentalismo sensorial-político, seja fazer a leitura de que se trata de um documentário. Tal qual um Eduardo Coutinho, que buscava novos rumos dentro do gênero – das cabeças falantes dos primeiros filmes até os engenhosos do final da carreira -,  Dea Ferraz, com Agora, está procurando outras possibilidades de invenção dentro do documentário. Se considerando seus filmes anteriores e suas diferentes propostas formais, é também um esforço para fazer diferente. A diretoria pernambucana , que já fez teatro, tem um sólido percurso no documentário, incluindo aí sua formação na Escola Internacional de San Antonio de los Baños, em Cuba. Entre seus filmes mais luminosos, estão Mateus (2019) e Modo de produção (2017). O primeiro sobre um artista mambembe, sua companheira e seu fusca levando alegria para populações bem periféricas; o segundo sobre um sindicato de trabalhadores rurais e seus direitos nunca respeitados.

Todos os filmes, de alguma maneira, parecem  faces de uma mesma moeda autoral (incluindo o ficcional Câmara de espelhos, 2016) , em que Dea Ferraz vai reafirmando, por  artifícios diversos , suas convicções  e suas descrenças.

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