11º Olhar (2022) – Babi Yar. Contexto
Loznitsa e as guerras: por que ainda nos chocamos (?)
Por Ivonete Pinto | 08.06.2022 (quarta-feira)
Parece slasher movie, tal o horror. Babi Yar. Contexto (Бабий Яр. Контекст’контексту, Rus., 2021) consegue a proeza de nublar tudo o que já vimos em torno de imagens documentais de guerra, incluindo o Holocausto. Mesmo com o preto e branco que tende a nos afastar emocionalmente da violência, somos impactados por arquivos de mais de 70 anos, revelando fatos que já conhecemos, com números de mortos que qualquer página da wikepedia pode trazer. No entanto, este mais recente inventário de horrores nos prova que ainda é possível o choque diante de corpos em putrefação, pertencentes ao que foram um dia pessoas e que acabaram assim por uma decisão de gabinete.
O filme do ucraniano Sergei Loznitsa, em suas 2 horas e pouco, remete a sua antítese, que é a posição de Claude Lanzmann sobre o dever ético de não exibir imagens do horror, no caso, o holocausto judeu. O foco central de Loznitsa está justamente na representação da materialidade dos acontecimentos em Babi Yar, arredores de Kiev. Não na forma da encenação, mas pelo apontamento objetivo através da lente das câmeras.
Lá, os nazistas durante o Reichskommissariat, o regime de ocupação do país, executaram mais de 30 mil judeus. Fosse incluir o massacre dos judeus em Odessa, de 1941, daria outras duas horas (estima-se que 900 mil a 1,6 milhões de judeus e até quatro milhões de ucranianos não judeus foram mortos durante a ocupação). Mesmo centrado no episódio de Babi Yar, com material de arquivo do exército soviético e do próprio exército alemão, é suficiente para não só lembrar o inominável das guerras, como para trazer o contexto da propalada adesão dos ucranianos ao nazismo. Motivo alegado por Vladimir Putin para promover a carnificina atual contra a Ucrânia, o nazi-fascismo ucraniano é demonstrado a partir da invasão alemã ao país. Ou seja, os ucranianos sofreram o diabo sob o jugo stalinista e com a invasão alemã em 1941 ofereceram pouca resistência, aceitando Hitler como um libertador. Putin vive dizendo: vamos libertar a Ucrânia! Afinal, a população ucraniana festejou os nazistas e o legado deste gesto está na Brigada Azov, uma unidade militar de extrema-direita.
A montagem de Loznitsa não julga, não faz ilações, preferindo seu método habitual baseado no rigor do discurso das imagens. Apenas exibe acontecimentos com a mediação de cartelas informativas com datas, locais, registros administrativos. O espectador que ligue os pontos e passe a entender o dado simbólico do que é ser nazi-fascista para um ucraniano de 1941 e o que pode ter ficado de herança para alguns grupos que ainda hoje acham que Hitler foi melhor para eles do que Stalin.
Os ucranianos não esquecem o trauma dos anos 1932-1933, o Holodomor: a grande fome que dizimou aldeias ucranianas inteiras porque Stalin “requisitou” toda a produção de grãos do país. O Holodomor, controverso enquanto genocídio perpetrado por Stalin, não está no filme de Loznitsa, porém é um inegável dado histórico que contribui para explicar um sentimento anti Rússia entre os ucranianos e a persistência de grupos de corte fascista que existem por lá. Assim, o que Loznitsa parece nos dizer é simples: preste atenção nos fatos históricos e não fique contra a Ucrânia agora que Putin está fazendo o mesmo, outra vez. Ele parece falar diretamente à esquerda mundial saudosa do poderio soviético, que insiste em culpar os ucranianos por terem sido invadidos. O buraco é mais embaixo e é tarefa de quem opina, pelo menos, como iniciação, ver obras como Donbass (2018), também de Loznitsa sobre o conflito com a Rússia, a distopia Atlantis (Valentyn Vasyanovych, 2019) e a ficção super didática Klondike: a guerra na Ucrânia (Maryna Er Gorbach, 2022).
Com a guerra da Rússia contra a Ucrânia agora em curso, nos envolvemos em mil discussões sobre o direito ou não dos ucranianos aderirem à OTAN e por vezes ignoramos que tudo começa e termina nos gabinetes dos líderes. Embora este tipo de contexto não faça parte das imagens do documentário de Loznitsa, decisões de gabinete abundam em outro tipo de filme. Os arquivos que o diretor escolheu como recorte só têm imagens de rua, de soldados, de populações expostas na película porque alemães e soviéticos, principalmente alemães, são fanáticos por registros, por sistematizar burocraticamente a bestialidade. Graças a isto, temos hoje obras como este documentário. E graças a um diretor que mesmo tendo assinado ficções contundentes como Minha felicidade (2010) e o citado Donbass, é um mestre do filme de compilação. Usa o arquivo não só para dizer “isto é verdade, aconteceu”, como para fazer história a sua maneira.
E Babi Yar, com a palavra “contexto” integrando o título (mantido do original ucraniano), sobretudo nos convoca a não nos precipitarmos em julgamentos de última hora, em tomadas de partido inconsequentes. Devemos lembrar que recentemente o diretor se manifestou energicamente a favor dos cineastas russos nos festivais de cinema, por entender que eles são tão vítimas quanto os ucranianos. Foi contra o boicote da arte e a favor de quem, não importa a nacionalidade, faz o mundo pensar. Soou paradoxal vindo dele, que pouco antes se desligou da Academia Europeia de Cinema (EFA) por esta não ter sido veemente o bastante contra a invasão de Putin. Mas foi coerente se considerarmos suas posições contra a barbárie.
Castigo – Após a retomada da Ucrânia pelos russos, em 1944, as filmagens de Babi Yar. Contexto passam a ser dos vencedores. E então temos o castigo. Em uma das sequências mais chocantes, podemos reconhecer o rosto de um dos soldados alemães que momentos antes prestavam depoimento no tribunal de Kiev, detalhando como e quantos judeus haviam matado. Agora estavam sendo enforcados. Em planos abertos, porém bem próximos, vemos a corda envolta nos pescoços, a leitura fria do motivo da pena e então os corpos pendurados, uns ainda debatendo-se em tremores mecânicos. Na plateia, uma multidão. No enquadramento (involuntário?) do último plano, aparece ao fundo uma torre de igreja a abençoar a punição.
Até Saddam Houssein já pudemos ver estrebuchando numa corda, em curtas imagens em movimento vazadas que correram os descaminhos da Internet. Sim, já vimos muitas mortes neste “estilo”, mas algo faz com que o que Loznitsa reuniu neste banquete macabro seja ainda pior. Certamente pelo fato de que neste momento a Ucrânia passa pelo horror novamente. Somos a audiência contemporânea desta guerra que obviamente poderia ser evitada não fossem as decisões de gabinete. Mas tem gente que é a favor dela por compreender que a história da humanidade não consegue caminhar de outro jeito. E que Putin é um estadista e não um assassino.
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