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Críticas

Coringa

Complexo, amoral, revolucionário. Um anti-herói para chacoalhar nossos valores.

Por Felipe Berardo | 02.10.2019 (quarta-feira)

Coringa (Joker, EUA, 2019) é o mais novo projeto da onda dos universos cinematográficos de super heróis, mas o filme decidiu tomar novos rumos em relação aos seus contemporâneos. Com um orçamento de tamanho médio para os padrões hollywoodianos, especialmente para produções do subgênero, e com uma classificação indicativa (16 anos) voltada mais para o público adulto – e ainda, tendo como exemplos de Deadpool e Logan -, o filme prometia algum tipo de reinvenção do subgênero de filmes de herói. Fosse essa mudança para melhor ou pior. 

Com essa promessa em vista, o mundo surpreendeu-se ainda pelo fato deste longa-metragem, com uma inusitada trajetória para um filme de herói, ter sido consagrado no 76º Festival Internacional de Veneza com o prêmio máximo do evento, o Leão de Ouro, por um júri comandado pela renomada cineasta argentina Lucrécia Martel.

Some-se, ainda, as declarações públicas de seu diretor Todd Phillips, nome por trás da direção de comédias como a trilogia Se beber, não case e Um parto de viagem, que citou filmes como Taxi driver e O rei da comédia de Martin Scorsese e News from home, de Chantal Akerman, como exemplos de inspiração direta para a construção do roteiro e do visual da produção.

Com a estreia do filme acontecendo amanhã (3), finalmente toda a mistificação advinda desses acontecimentos deve abrir espaço para discursos mais concretos em volta do filme. Quanto ao concreto, a sinopse do longa, já conhecida pelo público, trata do palhaço e aspirante a comediante Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) que sofre de distúrbios mentais e sente cada vez mais as pressões de um mundo hostil e injusto, até que esse enlouquece e transforma-se na icônica figura do Coringa.

Esse mundo hostil é a cidade de Gotham, que apresenta-se muito similar a uma Nova Iorque decadente dos anos 1970 e 1980, e é construída da maneira mais opressora possível, um lugar repleto de problemas sociais e financeiros envolvendo indivíduos sem aparente escapatória.

Em diversos momentos, no entanto, o diretor perde de vista a lógica de estruturas políticas e financeiras esmagando os marginalizados e acaba entrando no campo da crueldade desnecessária entre indivíduos, por exemplo, com uma cena em que um grupo de adolescentes roubam e espancam um homem em plena luz do dia sem quaisquer reações das pessoas ao redor.

Durante esses momentos de desumanidade detestável, o filme ainda consegue manter sua carga dramática e o interesse do público devido a excelente atuação de Joaquin Phoenix, que prova-se aqui, mais uma vez depois de Você nunca esteve realmente aqui (2017), como um dos melhores atores dessa geração, em especial no que se trata de atuação física pelo controle do próprio corpo.

Se neste filme, exibido no Brasil no ano passado, o corpo do ator parecia algo imponente, mas numa decadência com a força de seus músculos, junto a sua barriga protuberante de aposentado, em Coringa o que é mostrado é um corpo 23kg mais magro que parece tentar expulsar seus ossos dos ombros e costelas através de sua pele toda vez que Phoenix se contorce sem camisa numa dança ou na realização de atividades comuns. 

O ator também surpreende com confusos surtos de riso, associados à condição mental do protagonista, em que suas gargalhadas soam desesperadamente tristes, quase como choros incontroláveis. Além de construir uma interpretação tão envolvente, quanto excêntrica completamente nova para o personagem, ainda que reminiscente de trabalhos anteriores de sua própria filmografia como seu Freddie Quell de O mestre.

Coringa tem várias ideias desenvolvidas durante sua duração de 121 minutos, incluindo algumas promissoras que envolvem uma fluidez instigante entre delírio e realidade, tanto no passado do personagem principal quanto em sua vida atual, de forma que temporariamente o público também se perca na identidade e história do protagonista e no que é determinadamente real ou não. Infelizmente, no entanto, o roteiro não permite que essas dúvidas permaneçam não respondidas por muito tempo e logo separam claramente o que é real do que não é para os que assistem.

Resta, então, como ideia principal tomada pelo filme a ressignificação da figura do Coringa, vista anteriormente no cinema como uma personificação incompreensível do caos, para uma figura política de revolução dos marginalizados contra o status quo que se rebela na forma de uma violenta vingança armada.

Todd Phillips não parece entender completamente a problemática natureza dessa proposição, visto que o comentário político oferecido é demasiadamente simples; faltaria algo como a moral ambígua e espinhosa de sua inspiração principal Taxi driver para trazer à tona comentários mais potentes ou verdadeiramente desconfortáveis.

Da forma que existe, Coringa não possui uma visão política de mundo complexa e nem parece ter a consciência completa da posição problemática que toma, sem dar espaços para que o razoável apresente-se como opção viável. Ainda assim, ou talvez exatamente por essa imposição própria que não abre espaços para argumentos dentro do filme, há uma força considerável na falta de empatia e na áspera misantropia com que o diretor trata a violência e a revolução aqui. 

Sem meias medidas nem reconsiderações, Todd Phillips leva seu filme até as últimas consequências, não parecendo interessado em pensar melhor sobre quais são os pontos finais alcançados. Ao mesmo tempo que é uma proposição possivelmente perigosa, também possui uma força presente inegável.

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