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Críticas

Coringa (texto 2)

Um animal que já implodiu em si mesmo e está prestes a explodir numa sociedade doente

Por Luiz Joaquim | 05.10.2019 (sábado)

Rir chorando. Não. Isso já foi feito. E razoavelmente bem realizado no cinema. Gargalhar chorando. Está aí algo raro e proporcionalmente bizarro em sua capacidade de atrair e intrigar o espectador. É talvez por essa iconoclastia que Coringa (Joker, EUA, 2019), de Todd Phillips, será sempre lembrado no futuro; tendo, claro, a figura de seu protagonista Joaquin Phoenix colada a esse assustador malabarismo dramatúrgico aqui instalado.

Falemos objetivamente de quatro aspectos, entre diversos outros possíveis a destacar – e que, sim, serão cansativamente destacados no nosso universo virtual e nas mesas de bares – a respeito deste que era um dos filmes mais esperados de 2019.

O aspecto um diz respeito à construção deste anti-herói. Deste pária cujo filme nos faz gostar. As dezenas de “filmes de boneco” ou, para ficar claro, as dezenas de filmes de super-heróis MarvelDCComics despejados quadrimestralmente nas salas de cinema concentram suas energias em efeitos CGI, com os mais novos softwares do mercado dando um espetáculo plástico oblíquo, em suas imagens falsas que ofuscam, brilhando por trás de atores fazendo força nas expressões faciais enquanto olham para o nada num real fundo verde.

Coringa concentra-se nos detalhes da construção psicológica e física de seu protagonista. É, neste sentido, um drama policial sobre um pobre desvirtuado que só teve desgraças na vida. Por apelidar-se de Coringa, e viver em Gothan City, todas as outras associações ao super-herói da DC Comics que se fantasia de morcego para combater o crime vêm à tona aqui, para a alegria de fãs e nerds do mundo inteiro.

Mas é com o Coringa, ou melhor, com o pré-Coringa = Arthur Fleck (Phoenix) que ficamos por quase todo o filme. É dessa forma que o roteiro de Todd Phillips e Scott Silver desdobra-se, com enorme carinho, sobre seu protagonista, e assim somos conquistado – e, claro, pela entrega incompreensível (para quem não é ator [talvez para quem seja também]) de Phoenix ao papel.

Ladeado por uma Gothan imunda ali do final dos 1970 início dos 1980, e lembrando uma Manhattan sem coleta de lixo e infestada de super-ratos – como bem pontuou Felipe Berardo em texto publicado aqui no CinemaEscrito -, vamos conhecendo Arthur, que  se arrasta entre o seu trabalho de palhaço nas calçadas da cidade para atrair consumidores a uma loja. 

Ele se divide entre o trabalho, frequentar a terapia e cuidar da mãe idosa (Frances Conroy), uma senhora que insiste numa relação imaginária com o candidato a prefeito de Gothan, Thomas Wayne (Brett Cullen).

Vítima de uma disfunção mental, o aspirante a stand-up comedy Arthur gargalha quando deveria ficar triste, chateado ou tenso. É algo que, naturalmente, lhe causa constrangimento e problemas de sociabilidade. E é aqui que temos a principal chave, belamente explorada, neste roteiro e por esse ator brilhante chamado Phoenix. 

A disfunção de Arthur o torna único, e vítima imediata de sua própria limitação social. Arthur é um ninguém anônimo, que igual a milhões de outros anônimos no mundo fora da sala de cinema, precisa (sub)viver, cuidando da mãe e tentando controlar seu descontrole mental enquanto toma sete remédios por dia. 

Como não se condoer com uma figura assim? É um compadecimento, o nosso, que leva à empatia. Uma empatia cuidadosamente conquistada pela construção desse personagem. É essa a maestria de Coringa, que pode ter ajudado o filme a ser premiado no último Festival de Veneza, e deverá dar um Oscar a Phoenix em 2020; assim como Heath Ledger (1979-2008)  o levou em 2009 pelo mesmo personagem em Batman: O cavaleiro das trevas

É por esse elogio a Phoenix que chegamos ao nosso segundo aspecto de destaque aqui. O ator usa não apenas a expressão do rosto, mas a do corpo esquelético, dos ossos, dos músculos, da pele envelhecida e flácida (que a fotografia de Lawrence Sher apropria-se bem) como peça dramatúrgica. Serve tudo à composição de uma tecitura para aquilo que iremos reconhecer no pobre Arthur. 

Um animal que já implodiu em si mesmo e está prestes a explodir numa sociedade doente, tornando-se uma referência (enviesada) de libertação. Por essa linha de reflexão, esse Coringa é aquele cidadão que cansou de sorrir – por imposição mental ou por cortesia educacional – e decidiu permitir a loucura tomar o lugar da razão. Que bela catarse para o cordial espectador de cinema. Aquele que também sorri ao seus opressores, para sobreviver, enquanto a amargura interna lhe corre por dentro.

Daqui partimos para os outros dois aspectos a destacar: Coringa vem ao mundo, em 2019, num momento em que uma espécie de fadiga do politicamente correto entra em atrito com um cenário político internacional em que sua ideologia de ultra-direita, e mesmo fascista, ganha cada vez mais terreno. 

Apresentar aqui o Coringa como o anarquista que ele sempre foi, mas sobrecarregando-o no tom de um revolucionário social só o deixa mais atraente – perigosamente atraente, é verdade (mas contamos com o discernimento do espectador para deixar a violência do filme dentro do filme). E, nesse sentido, Coringa, o filme pode ser facilmente associado (guardando proporções, por favor) com obras como Bacurau ou Rambo: Até o fim

Se formos honestos, assumiremos que estamos a falar de qualquer filme em que uma espécie de justiçamento seja aplicado pela própria vítima. Essa paisagem de árida legalidade é aquela que os espectadores mais maduros conviveram com frequência nas salas de cinema nos 1980. E que em 2019 quase não a encontramos mais lá nas salas, mas cansativamente a vemos em noticiários. E não apenas restritos aos de polícia, mas também aos da política.

Nesse sentido, Coringa, competente, nos fornece um canal – como um cano de escape de um carro – para expurgar aquela conhecida pulsão de violência presente em todo o ser-humano. Não é à toa que, numa sessão ordinária de Coringa, em uma sala com o auditório cheio, seja provável você escutar um “Uhuu!” no momento em que Arthur Fleck reagir, pela primeira vez, com uma arma na mão. 

E, finalmente, mas não conclusivamente, vale registrar que Coringa é um filme baseado em HQ, mas que se volta com respeito ao cinema (sem abandonar totalmente a estética dos quadrinho – atenção para as sequências na escadaria).

No que tange ao cinema, há as referências/reverências óbvias a dois lindos Scorseses – O Rei da Comédia e Taxi Driver – atenção para a trilha sonora do Coringa, criada pela islandesa Hildur Guonadottir, de melodia grave, dura e tensa; ritmada como um pulsar, tal qual um lenta batida de coração.  E não é por acaso que Roberto De Niro aparece aqui como Murray Franklin, um comediante apresentador de um programa de tevê que é o grande modelo profissional de Arthur Fleck. 

Que bom, tudo isso. Que bom.

Para não ficar apenas no elogio, um ponto: a inserção na dramaturgia apresentando a jovem Penny Fleck (na pele da atriz Hannah Gross) não tem nada a acrescentar. Soa como a gordura que esqueceram de queimar.

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