Woody Allen: É possível que eu deixe o cinema
Allen fala da luta para trabalhar, das alegações de abuso que o perseguem e do próximo (último?) filme
Por Luiz Joaquim | 02.06.2020 (terça-feira)
Jason Solomons publicou ontem (1º/6) no portal da respeitada Financial Times, entrevista com o cineasta Woody Allen, 84 anos, refletindo sobre sua carreira a partir da pandemia do Coronavirus. Para o diretor de Um dia de chuva em Nova York – que tem estreia marcada neste final de semana no Reino Unido em plataformas de streaming (e continua sem distribuição nos EUA, após o descarte sofrido pela Amazon Studios, que patrocinou a obra) – a crise sanitária mundial é “outro prego no caixão” para o ramo de filmes. E destacou, mais particularmente, que pode encerrar aquela que é uma das mais prolíferas carreiras cinematográficas da história do cinema – a sua.
Tendo dirigido obras cinematográficas – 49, pelas suas próprias contas -, o também escritor Allen admitiu que não sabe se fará um novo filme. Em entrevista dada de seu apartamento em Manhattan, o diretor de Noivo neurótico, noiva neurótica lembrou do fechamento dos cinemas de Nova York, que tanto adora, como mais um motivo para finalmente encerrar a sua impressionante corrida de fazer um filme por ano, (desde 1969). “Tudo isso provocar algum efeito ruim em mim. As salas de cinema estão todas fechadas e não sei se muitas delas voltarão… As pessoas estão pensando: ‘Nem é tão ruim assim, em casa, eu posso apenas jantar e assistir a um filme em uma televisão com uma tela enorme em alta definição e com um som surround’… Mas eu não quero fazer filmes para a televisão, então, é provável que eu pare”.
Allen já tem outro filme rodado, o Rifkin’s Festival, que, conforme dizem, iria estrear em Cannes neste maio de 2020 antes de, logicamente, ter sido cancelado como diversos outros eventos afins. O plano passou a ser estreá-lo em outubro no Festival de San Sebastian, na Espanha, onde a enredo é ambientado. A distribuição comercial do filme – que traz no elenco Christoph Waltz, Louis Garrel, Sergi López e Steve Guttenberg (de Loucademia de polícia) –, entretanto, é incerta.
Allen escreveu também um novo roteiro que deveria rodar em Paris neste verão francês, “mas o vírus nos impediu. Tenho 84, e morrerei em breve. Se eu escrevi o melhor roteiro do mundo, não há ninguém para fazê-lo e nenhum lugar para mostrá-lo; logo, não vejo possibilidade de viabilizá-lo. Me acostumei a, ao concluir um roteiro, puxá-lo da minha máquina de datilografar e sair correndo até meu produtor para levantar o orçamento, definir o elenco e daí filmarmos. Tenho feito isso por anos e anos da mesma forma – um processo muito simples. Mas agora, não funciona… o que fazer?”.
O fechamento dos cinemas e a pausa na produção de filmes não é a única razão pela qual Allen está achando difícil fazer filmes e distribuí-los. Sua reputação recebeu novo baque nos últimos três anos, desde que sua filha adotiva Dylan Farrow reiterou as acusações de que Allen a molestou.
Como consequência, algumas das estrelas de Um dia de chuva em Nova York, como Timothée Chalamet e Rebecca Hall, renegaram publicamente seus papeis no filme, não pela qualidade, mas porque não queriam ser associados ao nome de Allen. Depois, começou a correr uma batalha contra a Amazon Studios que se revelou complicada após Greta Gerwig e Colin Firth terem dito que nunca mais trabalhariam com o cineasta, ao contrário de artistas espanhóis e franceses, como Elena Anaya e Louis Garrel.
Com o repúdio público feito pelos atores norte-americanos, a carreira do diretor sofreu uma guinada extraordinária, considerando que seus filmes deram Oscars para Diane Keaton, Cate Blanchett, Dianne Wiest e Penélope Cruz. Os atores costumavam brigar para trabalhar com Allen, aceitando receber bem menos que o salário habitual para poder aparecer num de seus filmes, mas a ascensão do movimento #MeToo se espalharam por todo o setor cinematográfico nos Estados Unidos em apoio às alegações dadas por Dylan Farrow.
Há críticos de cinema que não mais escrevem sobre os filmes de Allen, jornais que não publicam entrevistas e, no início desse ano, os funcionários da editora Hachette fizeram uma paralisação quando surgiu a notícia que a empresa estava para publicar o livro de memórias do cineasta, A propósito de nada. Não demorou e a editora desistiu do projeto, deixando no ar a possibilidade da não impressão do livro até entrar em cena uma editora menor e, agora, o livro estar disponível em formato e-book.
A matéria do FT segue relatando que, no livro, os capítulos a respeito das alegações de abuso por parte de Mia Farrow tornam a leitura difícil e convincente. E Solomons, autor da matéria, se coloca em primeira pessoa no texto: “O que se deve fazer se você é fã ou, como eu, autor de um livro sobre seus filmes? Mesmo por ter escrito aquele livro [Woody Allen Film by film, 2018] sou acusado de validar um monstro, de aumentar a bruma da fama que gira ao seu redor de modo a ofuscar seus crimes e, com isso, fazer com que as vozes das outras vítimas feministas sejam ignoradas. Eu não quero isso”.
“Eu posso lhe garantir que você não tem nada para se envergonhar”, foi a resposta de Allen para essa colocação. “Mas você não pode dizer nada a essas pessoas [que acreditam nas alegações]. Nem eu. Coloquei no livro a verdade pelo ponto de vista dos médicos, da polícia, dos investigadores e das testemunhas oculares. E ainda, há o pessoal do detector de mentiras o pessoal do sistema de saúde. Há pessoas que examinaram tudo meticulosamente por 14 meses, há também as babás que trabalharam na casa [onde o abuso supostamente ocorreu] e há a visão do meu filho Moses, que morava lá”. (Moses Farrow, adotado por Allen e Farrow, tem sido uma voz determinada e ativa na defesa de Allen e tem sido ainda mais contundente contra as alegações de Farrow – para saber mais clique aqui).
“Tudo o que você pode fazer é o que eu faço e ignorar as bobagens. As pessoas que estão interessadas o suficiente podem investigar a história por si mesmas ou no meu livro, e qualquer pessoa pensante chegaria à mesma conclusão que os investigadores chegaram: que isso foi um não-evento, pré-fabricado e simplesmente não aconteceu”.
“Eu sigo com a minha vida e, depois de Mia, continuei com a fase seguinte da minha vida com Soon-Yi, que tem sido maravilhosa”. (Foi o caso com Soon-Yi Previn, filha adotiva de Mia, então com 21 anos, que terminou seu relacionamento com Farrow. Ele e Previn se casaram em 1997).
É pouco provável que as críticas a Um dia de chuva em Nova York saíam positivas. Não porque não trazem fotografias excepcionais de Vittorio Storato ou belas locações em Nova Iorque, ou uma boa performance de Chalamet como o personagem Gatsby Wells – um jovem rico de Manhattan que gosta das músicas de Irving Berlin e da jogatina.
Jason Solomons segue, no texto, arriscando que o desdém e aversão ao filme virá porque, no fundo, o filme revela situações cômicas de uma bela e jovem repórter, estudante de jornalismo (Elle Fanning, 22), uma interiorana que é perseguida não apenas pela chuva de Manhattan mas também por um diretor de cinema (Schreiber), por um roteirista (Law) e por um ator (Diego Luna).
“Allen não imaginou que, considerando as circunstâncias, isso seria material explosivo para atiçar a ira do público que, agora, está afiado para detectar evidências de comportamento predatório em seu trabalho?” pergunta Solomons.
“De jeito nenhum”, respondeu o diretor de Manhattan. “Eu pensei que era uma situação bastante cômica e essa jovem mulher tinha que navegar pelo seu próprio caminho, com base na experiência e com sabedoria, coisa que ela faz. Eu não escreveria um filme ditado ou influenciado por opiniões ou movimentos. Eu só escrevo o que considero uma situação cômica para personagens ou para um conjunto de personagens”.
As perspectivas de Allen não estão na moda. E seus escritos em suas memórias a respeito da aparência de certas atrizes gerou alguns comentários. Ele vive numa era passada? “Passamos de uma era passada para uma era digital”, diz suspirando. “Os modismos mudam, mas minha moral continua a mesma. Um menino e uma menina em um encontro hoje não são como em meados dos anos 1930, eles se comportam de maneira diferente. Muitas coisas eram tabu sexual enquanto eu crescia, eram até criminosas e agora são comuns… E também comungo dos valores da classe média, gosto da ideia do casamento e da fidelidade… Eu nunca fui um paquerador em boates com milhares de mulheres”.
O futuro não parece firme para seus projetos – segue informando, a entrevista – justamente quando Allen se aproxima da realização de seu 50ª filme, um marco. Considerando isso, o cineasta tem escrito uma peça teatral e uma ópera, o que sugere que seu futuro está no teatro, com o qual já trabalhou, tendo criado peças para a Broadway na década de 1960 como Don’t drink that water e Play it again, Sam (que gerou o filme Sonhos de um Sedutor em 1972).
Allen não chegou a escrever nada relacionado ao Covid-19 ou ao confinamento. “Não é o tipo de coisa que escreveria bem. Filmes assim seriam melhor para a televisão, que podem satirizar ou dramatizar e conseguir respostas bem imediatas… Haverá comédias pandêmicas e algumas podem ser desagradáveis e grosseiras, mas outras serão perspicazes, verdadeiras e divertidas. Mas não feitas por mim. Acho tudo isso horrível demais. Tenho me escondido debaixo da cama, me sentido inútil e esperando que acabe. O melhor que posso fazer é sentar e esperar por uma vacina que me permita que ser perdoado e que viva meu passado nos dias de hoje”.
Solomons constata, na entrevista, que o humor seco e filosófico de Allen ainda está lá. Tem de estar, pois seu estado atual é de luto com a morte, pelo Coronavirus, de seu amigo Eddie Davis, com quem tocava jazz todas as semanas, por muitos anos.
“Não sabemos qual será o futuro da banda”, diz. “Toquei com Eddie na segunda-feira à noite, como sempre, e duas semanas depois ele se foi… Um sujeito genial, estamos todos arrasados por isso. Ninguém sabe se voltaremos a tocar”.
As noites de jazz de Allen têm sido tão regulares e definidores de quem ele é como assim são seus filmes nestes últimos 50 anos. O fato de ambos estarem ameaçados aponta para uma grande mudança em uma das vidas culturais mais emblemáticas de Nova York e do cinema mundial.
Um dia de chuva em Nova York será lançado no Reino Unido nesta sexta-feira, 5 de junho.
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