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Críticas

Golpe de Sorte

O triunfo da sensibilidade e da sorte

Por Luiz Joaquim | 29.12.2023 (sexta-feira)

Não é novidade que Golpe de sorte (Coup de Chance, Fra., 2023) pode ser o último filme dirigido por Woody Allen. Não que o nova-iorquino tenha perdido o prazer pela criação cinematográfica ou que esteja mal de saúde. A questão está naquilo que circunda o cineasta em sua terra natal quando o assunto envolve Mia Farrow. Não à toa, este trabalho é o primeiro, em mais de 50 anos de carreira, totalmente falado em outro idioma diferente do seu.

No caso, é pelo idioma francês que a jovem protagonista Fanny (Lou d Laâge) e todos ao seu redor se expressam numa primaveril Paris. Mas, visto o filme, não demora para esquecermos que estamos ouvindo aquela língua, pois os diálogos, o teor dos diálogos e o seu ritmo indicam que ali está Allen com a mesma idiossincrasia própria de seus personagens nova-iorquinos de sempre.

E a personalidade do autor não se encerra aí. Sua marca está também no cerne do enredo que irá virar a vida de Fanny de ponta-cabeça. Talvez em nenhum outro filme, o cineasta tenha sido tão explícito na maior fé que ele alimenta na vida (conforme já adiantou em entrevistas): a sorte. Até no título do filme ela está estampada.

Não é, também, apenas por ela, a sorte, e pelos diálogos idiossincráticos que identificamos Allen. Percebemos, mais uma vez – e agora de forma escancarada – como o diretor e roteirista deposita sua bênção sobre o sensível, sobre o romântico. Sensível e romântico habitualmente atribuído a personagens desvalidos pela lógica do capitalismo.

E este romântico costuma ser um financeiramente fracassado ou, em outras palavras, um artista ainda em busca de seu lugar ao sol. Mas um artista. E entendam ‘artista’ aqui como qualquer pessoa (profissional ou não) com a sensibilidade mais refinada para a arte do que para o dinheiro.

No cinema de Allen são eles os dignos de conquistarem mulheres maravilhosas, e não os endinheirados, fazedores de riquezas. É o triunfo da arte sobre a fortuna do vil papel.  Ao menos em seus filmes românticos se pode vislumbrar aquilo que a vida real pouco nos permite testemunhar.

No cinema de Allen os sensíveis são os dignos de conquistar as mulheres, não os endinheirados

Golpe de sorte também traz um elemento comum a diversos outros títulos de Allen: a trama de um assassinato por um marido encrencado ou enciumado, o que remete a Match point, um de seus poucos sucessos de público, e a uma de suas diversas obras-primas, Crimes e pecados.

ENREDO – Ainda que tente se convencer do contrário, a jovem marchand Fanny se sente uma esposa troféu neste que é seu segundo casamento. O marido rico e de negócios escusos, Jean (Melvill Poupaud, ótimo), a conquistou exatamente quando ela estava saindo fragilizada do primeiro casamento. Ele a mimou com muitos presentes caros e, enfim, lhe deu a segurança que ela nunca possuiu em relacionamentos anteriores.

Jean (Melvill Poupaud), o marido rico, mima a esposa-troféu Fanny (Lou d Laâge)

A moça começa a relativizar sua vida quando esbarra na rua com um antigo colega da escola, o hoje escritor Alain (Niels Schneider), que não se constrange em repetir o quanto era apaixonado por Jeane na adolescência. Seu primeiro amor.

Allen capricha no contraste entre Jean e Alain. Enquanto o primeiro tem pretensões infantis, com o seu trenzinho elétrico, e vaidade adolescente, como a de embelezar sua esposa-troféu para provocar inveja nos outros homens, o segundo quer experimentar a vida e deixar levar-se por ela, livremente, para apurar aquilo que irá desenvolver em seus livros.

E enquanto Jean está cercado pela elegância das roupas e pelo conforto nas mansões que seu dinheiro pode dar, Alain é a encarnação do descuido com a próprio imagem (sendo esse um de seus charmes) e mora num minúsculo quarto e sala de um sobrado, só que romântico o suficiente para fazer Jeane querer sempre voltar lá.

Allen, com sua experiência, estabelece a intensidade desse romance entre os amantes logo no primeiro terço do filme. É pelo artista que Allen nos faz torcer. É pelo menino invisível do colégio que se tornou num escritor delicado e intensamente apaixonado, que Allen faz o espectador percebê-lo como um par melhor para a protagonista Jeane.

Mas, a certa altura, Golpe de sorte vira outra coisa e um personagem que parecia decorativo ganha preponderância decisiva. A mãe de Jeanne, Camille (Valérie Romercier), se torna uma espécie de consciência da filha já dormente pela calmaria que a vida ao lado de seu marido mimador lhe proporciona.

Um marido que, nas suas palavras, cria sua “própria sorte”, porque, na verdade, não acredita na sorte, mas sim naquilo que o dinheiro pode comprar. E, por isso, o deus Woody Allen lhe dá o destino que pessoas assim merecem. Por sorte ou por falta dela.

 

– filme visto na sala 17 da UCI Arrábida, Porto, Portugal em 17/11/2023.

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