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Festivais

44ª Mostra de SP (2020) – Glauber, Claro

Memórias de um Glauber muito louco

Por Ivonete Pinto | 02.11.2020 (segunda-feira)

Glauber Rocha dava pintas de ser um Che Guevara viajando para multiplicar a revolução. A diferença é que ele não possuía um modelo para chamar de seu, como  o cubano tinha. Messianicamente, Glauber viveu um exílio filmando em diversos continentes, absorvendo a cultura  e convivendo com os intelectuais de esquerda destes lugares  – além do próprio Guevara, que chamou o brasileiro de O Dom Quixote da América Latina.

Foi neste contexto que nasceu Claro (1975), que o documentário Glauber, Claro  (César Meneghetti, 2020)  escrutina a partir de imagens do filme rodado em duas semanas em Roma e,  sobretudo, de  depoimentos da equipe e de críticos de cinema. Os entrevistados notam esta característica on the road de Glauber. Antes de Claro, ele dirigiu História do Brasil, em Cuba (1974),  Cabeças cortadas, na Espanha (1970) e O leão de sete cabeças, no Congo (1970). Não fez estes filmes somente porque tinha uma missão, diga-se. Foi “convidado” pelos militares a não retornar ao Brasil.

Sem os depoimentos, seria tarefa inglória  descontruir este que é um dos mais codificados do diretor, o que menos se comunica e um dos mais desconhecidos. Claro  está assentado em alegorias que trazem  fragmentos de teses do ponto de vista de um intelectual do terceiro mundo. Um mosaico do pensamento de Glauber sobre a luta de classes, sobre as relações com o colonizador europeu.

Com a fama de inventivo e revolucionário, o diretor aglutinava muitos nomes importantes  em torno de seus projetos mirabolantes, algumas vezes sem receber por isto, como o ator Tony Scott. A mais conhecida do elenco,  Juliet Berto (A Chinesa, Godard),  também esposa de Glauber à época,  além de protagonizar o filme, trabalhou como produtora.

O diretor ítalo-brasileiro  César Meneghetti, ligado às artes visuais, stricto sensu, e aos documentários da área, faz um desfile de técnicos, atores e diretores falando do processo de criação de Glauber em Claro, entre eles, Marco Bellocchio e Bernardo Bertolucci. Irônico é o depoimento do diretor de fotografia Mario Gianni,  admitindo que achava o filme confuso, sem nexo, mas depois de ouvir Bertolucci elencando das suas qualidades, passou a vê-lo de forma diferente. Bertolucci chama a atenção, em depoimento para outro filme resgatado  no documentário, para as imagens que Glauber fez do Coliseu. A decadência  do Ocidente estava ali.

O crítico Humberto Silva, no livro  “Glauber Rocha – cinema, estética e revolução”, afirma que Claro recebeu poucas e contundentes críticas. Teria sido realizado  “após as experiências frustradas no Chile e em Cuba” e que o filme   “assemelha-se a um esporro diante do quadro em que se encontrava.” Em sua defesa, Silva reitera que Glauber estava “pouco à vontade no território do colonizador” e que por isso o filme é uma “‘obra-prima’ que expressa a condição emocional de Glauber em seus últimos meses de exílio.”

Aliás, quanto ao tema do colonizador, Glauber tinha um entendimento a partir de Frantz Fanon (“Os condenados da terra”), como diz Jean-Claude Bernardet em entrevista à revista Mnemocine nº 3. Segundo Bernardet, não houve no Brasil esta espécie de colonialismo, mas uma apropriação do contexto França-Argélia que não correspondia a nossa realidade. Porém na Europa, Glauber era muito bem compreendido em seus discursos e  manifestos.

Na sucessão de improvisos em Claro, há a imagem da atriz Juliet Berto rolando no chão ao comando de Glauber, que está em quadro. Mas ela não está apenas rolando no chão. Ela rola na poeira da civilização ocidental!

Imagem extraída de “Glauber, Claro”

O que se destaca nos depoimentos, é quanto os italianos  ficaram perplexos com o método glauberiano. Um método caótico, baseado no improviso, com um diretor energético em cena gritando e rindo. Quando não, em estado alterado. Um dos assuntos do filme virou até uma discussão que hoje os velhinhos na casa dos 80 anos rememoram. Diz respeito a um certo dia, quando rodariam uma cena na praia,  em que Glauber resolveu distribuir LSD à equipe, ele próprio incluído. Ficam divididos se o ácido  foi servido  no café da manhã ou no almoço. Compreensível que não lembrem.

Quando um crítico da época, Adriano Aprà, é entrevistado, diz  que ao ver Claro ficou irritado  com “aquelas performances,” que pareciam vazias de sentido, diletantes. No entanto, assume que os defeitos técnicos, que o faziam parecer um filme doméstico, davam-lhe um valor. O  crítico se deu conta que ali havia um documentário, um documentário político, que continha toda a raiva de Glauber.

Este comentário, naturalmente, serve como chave para entrar na obra do maior expoente do Cinema Novo. Sua capacidade de transformar defeitos técnicos em linguagem, o que significava, afinal, o cavalo de batalha do próprio cinemanovismo,  o espírito da estética da fome. Basta citar que a câmera Arriflex defeituosa usada em Claro, que deixava entrar luz no negativo, resultou em uma plasticidade singular.

Precariedade, no entanto, que não está em A Idade da Terra (1980) e  que o documentário de Meneghetti  relembra como um  momento histórico. Glauber achava que ganharia o Festival de Veneza, mas perdeu para Louis Malle (Atlantic City)  e John Cassavetes (Gloria), que dividiram o Leão de Ouro. A entrevista de Glauber espinafrando o francês e o americano é um épico do estilo glauberiano. Colérico, falando naquela língua que ele inventou misturando vários idiomas e no fundo falando baianês,  acusou estes diretores de fazerem comerciais “mascarados de filmes de vanguarda”. O fato é que  A Idade da Terra foi incompreendido por todos, inclusive pelo amigo e defensor Michel Ciment. O crítico francês, que estava no júri, foi acusado por Glauber de receber dinheiro do imperialismo americano.

Curioso é que o documentário traz um episódio ocorrido cinco anos depois. Deve estar ali para ilustrar melhor a personalidade do retratado,  que defendia os povos oprimidos e seu cinema  com uma veemência que beirava a loucura. Hoje, 45 anos depois de Claro,  os velhinhos de cabelos  brancos e os de cabelos pintados vão ao mesmo restaurante que comeram durante as filmagens de Claro. Brindam ao louco, sem deixar de reconhecer que a arte, de qualquer lugar do mundo, precisa de pessoas intensas e passionais como Glauber.

A Itália que Glauber encontrou  vivia uma grande  turbulência política e em seguida viu nascer o terrorismo de esquerda das Brigadas Vermelhas. Muitas ilusões foram desfeitas. Neste 2020, por mais bizarro que um filme de Glauber possa parecer, podemos pensar se, como intelectual na linha de frente,  estaria atento às pautas sociais. O que ele faria para tentar deter o obscurantismo que ameaça se instalar por longo tempo por aqui? Seus amigos dos anos 70 diziam que ele era um visionário. Em 1974, elogiou o estrategista da ditadura militar, o general Golbery do Couto e Silva, chamando-o de gênio da raça. Ok, este é um capítulo batido de sua história; ele  era um sonhador controversamente pragmático, pois sabia que estava nas mãos  do general a arquitetura de uma possível abertura.

Estaria Glauber disposto  a um elogio ao general Mourão? Pouco provável. As “inteligências” hoje  são outras. Mas a exaltação ao inimigo lhe valeu rupturas violentas, a esquerda nunca o perdoou.  Há quem diga que o próprio câncer que o abateu em 1981, aos 42 anos, foi um efeito colateral do gesto. Para as gerações atuais, ver Claro, saber como foi filmado, ilumina a figura mais icônica que o cinema brasileiro já teve. Um Dom Quixote lutando contra moinhos de vento bem reais.

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