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Festivais

47ª Mostra SP (2023) – “Pedágio” e “A Besta”

Filmes que retratam o tempo presente.

Por Luiz Joaquim | 21.10.2023 (sábado)

Na imagem destacada, vemos Kauã Alvarenga e Maeve Jinkings em “Pedágio”.

SÃO PAULO (SP) – Já se comentava que esta edição 47 da Mostra Internacional de Cinema de SP estava bem servida de produções brasileiras. E é a mais pura verdade. Há pelo menos cinco títulos obrigatórios que, juntos, apontam para uma bela safra. Até que a música pare, de Cristiane Oliveira; Estranho caminho, de Guto Parente; O dia que te conheci, de André Novais Oliveira; Sem coração, de Nara Normande e Tião (esse exibe amanhã, dia 22, às 21h30, por aqui); e Pedágio, de Carolina Markowicz. É uma safra que, sem dúvida, fará um barulho bom quando ganhar o circuito comercial brasileiro a partir de 2024.

Exibido ontem (20), Pedágio chegou com a moral dos quatro prêmios recém-conquistados no Festival do Rio: atriz para Maeve Jinkings, ator para Kauã Alvarenga, atriz coadjuvante para Aline Maria Maia e direção de arte para Vicente Saldanha, sem contar com os bons frutos conquistados em Toronto e San Sebastian. 

Ver o filme também reforçou a percepção da segurança de Markowicz assinando um filme. No roteiro de sua autoria, Suellen (Maeve) trabalha num pedágio enquanto se preocupa com o filho adolescente, Tiquinho (Kauã), postando vídeos nas redes sociais com suas performances musicais. 

Decidida a resgatar o filho para o “caminho certo”, Suellen se empenha, com a ajuda do companheiro Arauto (Thomas Aquino), a fazer a matrícula do jovem num curso de “cura gay” ministrado por um pastor estrangeiro indicado pela colega protestante, Telma (Maia). 

Em ‘Pedágio’, a atenção aos detalhes revela a profundidade dos personagens, tornando o filme memorável.

O mote aqui é fundamental para debater o intolerante mundo de hoje (de sempre?). Pelos olhos de Suellen é possível vislumbrar, ao menos um pouco, o que poderia passar na cabeça de pais que encaram a orientação sexual do filho como algo curável (o que pressupõe ser uma doença). Sim, eles existem.

São os detalhes que cercam o cotidiano social e visual (atenção para a direção de arte da casa da protagonista) de Suellen e de Tiquinho, e as miudezas que compõem a personalidade dos dois, que tornam Pedágio um filme memorável. 

Claro que isso não teria muito valor sem a luminosa atuação da dupla Maeve e Kauã. Mais ainda: sem a luz também dos personagens satélites vividos Aquino e Maia, com esta última atraindo todos os olhares sempre que em cena. 

Markowicz também deixa sua marca estética, por exemplo, ao enquadrar Maeve quase sempre em contra-plongée (com a câmera baixa, voltada para cima), o que empresta à Suellen a altivez que ela busca dentro de sua confusa lógica de ordem e respeito social para a sua família. 

Nesse sentido, Markowicz também nos provoca ao esgarçar as fraquezas da, em tese, reta Suellen (com um criminoso plano para “salvar” o filho) e com as puladas de cerca do matrimônio da fiel protestante Telma.

O que parece destoar em Pedágio são apenas as inserções das aulas da “cura gay”. Há uma proposta cômica nestes blocos para além do aceitável no contexto geral do filme. 

Em outras palavras, o absurdo do que se apresenta nessas aulas, no filme, parecem querer reforçar algo que naturalmente já é patético. É de se pensar se a composição das aulas aqui fosse construída dentro de uma argumentação mais comprometida com a realidade (ainda que absurdas, obviamente), para logo depois serem desconstruídas por Tiquinho, talvez seu efeito fosse mais eficaz em termos dramáticos como um todo para Pedágio.

BONELLO – São poucos os filmes que deixam uma sensação tão clara, num festival ou mostra, de que são destaques simplesmente porque estão noutro patamar de concepção cinematográfica. A besta (La Bête), do sempre intrigante Bertrand Bonello, é um deles.

Exibido em Veneza, A besta nos coloca em 2044 com Gabrielle (Léa Seydoux) exitando passar pelo processo de purificação do DNA para habilitá-la a conseguir um trabalho melhor, sob o julgo da Inteligência Artificial que administra nossa sociedade.

Se concluído o processo eliminará seus sentimos, deixando-o mais próxima de como funciona uma máquina. Com a eficácia de uma máquina, e não a de uma humana. Com as falhas e alegrias, próprias do humano. 

Por meio da ficção científica alegórica, o realizador Bertrand Bonello aborda o nosso presente, cada vez mais influenciado pela tecnologia, a ponto de nos transformar em autômatos.

Bonello incrementa o sobrenatural nesse enredo – usando como pouco os recursos da montagem – ao fazer Gabrielle reencontrar na Louis (George MacKay, do filme 1917) na Califórnia do futuro. Ele foi uma paixão de outra vida, quando Gabrielle era uma infeliz mulher casada, vivendo um amor proibido com aquele jovem, em Paris, ali no inicio do século 20.

Livremente inspirado no conto The beast in the jungle, de Henry James, A besta nos seduz pela forma aparentemente errática (apenas ‘aparentemente’) com que junta as peças entre passado, presente e futuro para falar de nós mesmos, quase autômatos, nos dias de hoje. A pergunta jogada aqui é, seria o amor e o medo os únicos elementos que transcendem pela humanidade? Os únicos elementos que persistirão ao automatismo? 

É um filme para ver e rever. 

BRITANICOS – Ontem (19) foi também o dia da primeira exibição por aqui de Névoa prateada (Silver Haze), da holandesa Sacha Polak, com produção britânica e ambientado em Londres.

Não é apenas a ambiência física que faz Névoa… parecer um notável filme britânico contemporâneo, mas também sua estrutura estético-dramática de planos curtos somada a pequenos diálogos que resolvem muito bem para o espectador sobre a complexidade psicológica de seus personagens. E como filmam bem as dores da vida, esses ingleses!

A protagonista aqui é a enfermeira de 23 anos, Franky (Vicky Knight, premiada em Berlim). Ela leva a vida tentando administrar a ansiedade de ver seu trauma, vivido quando tinha 8 anos, passar pelo crivo da justiça.

‘Névoa Prateada’ aborda um relacionamento complexo entre protagonistas marcado por trauma e neurodivergência, com personagens secundários cativantes.

Quando criança, Vicky escapou de um incêndio num pub causado pela amante de seu pai, que abandonou a família logo depois. Como marcas do acontecimento no passado, Vicky apresenta a pele do rosto, pescoço e braços enrugada pelas queimaduras. 

Quando começa a viver uma nova experiência amorosa com uma das pacientes. A suicida Florence (Esme Creed-Miles), um sopro de alegria entra na sua vida, mas não demora muito para virar um tufão desastroso em função da instabilidade psicológica de Florence. 

Névoa prateada, entretanto, não se resume ao relacionamento das duas. Mais uma vez, filmes com coadjuvantes fortes (em sua performance e estrutura dramática) fazem toda a diferença num bom filme. No caso, a excelente Angela Bruce, no papel de Alice, a responsável por Florence, também rouba a cena, como um contraste em meio ao caos das duas jovens, e como um guia maduro, apontando para a necessária transição de Vicky do trauma do passado para dar passos firmes em direção ao futuro.

E como filmam bem as dores da vida, esses ingleses.

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