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Críticas

Sertânia (texto 2)

Sertânia como profecia para o século 22

Por Ivonete Pinto | 08.03.2021 (segunda-feira)

Foi  um presente mais uma exibição de Sertânia (Geraldo Sarno, 2018), que aconteceu de forma aberta no YouTube no início de março, na sessão especial do cineclube Macunaíma, da Associação Brasileira de Imprensa.  Prêmio de Melhor Filme Nacional pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e pela Associação de Críticos de Cinema do RS (Accirs), já havia passado por  Tiradentes, Guarnicê e Ecrã e ficado em cartaz em algumas salas ano passado. Um filme grandioso na sua operação artística e modesto na sua distribuição, precisa mesmo de mais chances para ser visto.

De saída, deve-se admitir que é um tanto difícil resumir Sertânia, mas para quem não viu ou quer rememorar o enredo, o artigo de Luiz Joaquim aqui no CinemaEscrito (clique aqui) dá conta do desafio.

Também requer dizer o óbvio, antes de esquecermos que as salas de cinema ainda existem: ver esta obra tão especial em um aparelho de TV ou no computador é um exercício que implica, o tempo todo, em imaginar como seriam as imagens em tela grande, como seria o som em equipamento apropriado.  E o  surpreendente é que o filme funciona mesmo sem as condições ideais, tal a força peculiar de suas imagens.

A aparência de filme exposto em Sertânia, a luz estourada, gera uma luminosidade que parece cortar os personagens em sua cianotipia azulada.  Na abertura, o cangaceiro ferido se arrasta  como cobra, enquanto a música com estridências metálicas também age neste sentido de rasgo. Estranho, porque a atmosfera em preto & branco da fotografia de Miguel Vassy acaba por remeter a um espaço futurístico, algo como 2001 de Kubrick. Provavelmente, a música original de Lindemberg Cardoso impulsiona esta viagem interpretativa.  Talvez, também,  porque as balas e os soldados da volante entrem em cena como que bailando, na projeção causada pelo estado febril, quase um delirium tremens de Antão Gavião (Vertin Moura); talvez porque Sarno propõe a rudeza do ambiente de Canudos com toques de sonho em uma dinâmica narrativa que está no passado dos personagens.

O que o diretor Geraldo Sarno poderia acrescentar aos filmes de cangaço? Ele próprio, baiano de nascimento, é um expert em temas relativos ao Nordeste, como o documentário Viramundo (1965),  a ficção Coronel Delmiro Gouveia (1978) e os não-ficção da Caravana Farkas, onde se ocupou principalmente das consequências dos movimentos migratórios do Nordeste  para o Sudeste. O que hoje move Sarno? Nostalgia, revisão, apropriação política para inserir reflexão sobre o momento atual?

Antão, o narrador de Sertânia,  interpreta o mundo como alguém que não é protagonista, embora seja o personagem central. Vê o mundo meio de lado. A repressão na figura dos soldados, às vezes enfileirados ao modo do Encouraçado Potemkin, igualmente  parece que não representam a preocupação principal de Antão. Ele sai de cena para dar espaço ao Capitão Jesuíno (Julio Adrião) em suas relações com as elites locais. Note-se que o enredo antecede aos episódios históricos envolvendo Lampião. Os líderes do cangaço estão ainda na fase anterior de ruptura com as elites, por isto, às vezes a repressão do Estado  –  as volantes – aparecem  descoladas dos proprietários de terra e da própria Igreja, que na realidade formam um corpo só. São forças da repressão que se retroalimentam, são interdependentes. Estado, Igreja e latifundiários formam uma aliança Santa e institucional e o filme aponta os embriões desta configuração. Aquele pontual histórico que se alarga e vem se atualizar no hoje, já que o fato de existirem padres e até um papa progressista não  transforma a Igreja, como instituição, em aliada dos mais fracos. E a elites, bem, as elites cospem na cara da população diariamente, num looping  sem-fim.

Tudo isto está em Sertânia e o ponto de vista que o espectador vislumbra é de alguém que não tem poder para mudar a história. Este estar em segundo plano personificado por Antão lembra um personagem de Humilhados e ofendidos de Dostoiévski. Referindo-se a Aliocha, o Príncipe diz lá pelas tantas que “a maior proeza de um homem consiste, talvez, em poder limitar-se em sua vida a um papel de segundo plano” (edição de 2017, p.283). A referência é ao romance de Turguêniev, A véspera (1859). Perigoso defender com segurança tal comparação, mas dá para arriscar que calha com o personagem de Antão, dotando o filme de uma dimensão filosófica mais interessante ainda. Com a fortuna crítica que a produção  vem construindo, é possível que na academia esta abordagem venha a ser examinada com maior profundidade.

cena de “Sertânia”

Em termos mais evidentes, o filme propõe referências com certa filmografia do Cinema Novo. Antão vai nos guiando no passado e no presente, com direito a repassar toda profecia de Dom Sebastião, num diálogo transversal com Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) e à citação aos tableux vivants de São Bernardo (Leon Hirszman, 1972).   Porém, Sarno  supera o diálogo das citações. Seu  pulo do gato está na não linearidade do tempo e na metalinguagem nouvelle vague: o corte para a cidade que o protagonista abandona de trem, voltando para o sertão; a equipe que aparece em quadro permitindo mil interpretações, para além da quebra da quarta parede. Na imagem “vazada”, chama  atenção a quantidade de mulheres no set de filmagem, incluindo a produtora executiva Bárbara Cariry. A propósito,  diz muito do projeto a figura do diretor rodeado de jovens. A cada dez críticas sobre Sertânia, nove falam da surpresa ao verem um diretor com mais de 80 anos dirigindo algo tão moderno. Esquecem, ou não sabem, que Ingmar Bergman já era octogenário quando   fez o soberbo Sarabanda (2003). Haveria outros exemplos, o suficiente para não configurar exceção.

Sertânia não é um filme perfeito, há discrepâncias na direção de arte (que o p&b disfarça), no figurino, na performance de alguns atores, mas o que importa? O filme não está assentado no seu orçamento, mas na sua capacidade de reinventar o que já foi feito também de modo precário nos anos 1960.  O essencial está no gesto político de trazer de volta o que não pode morrer: a resistência a um Estado a serviço das elites. O exame das causas e das consequências que apenas se rearranjam no século 21. Antão agora é outro. Nasce Gavião, Matador de Cobra, batizado assim pelo  Capitão Jesuíno. “O pai morreu, mãe?”, repetido inúmeras vezes dá um tom épico para a desgraça que se repete ad infinitum.

Antão Gavião está morrendo e a luz estourada não é maneirismo estético, ela faz todo sentido como elemento narrativo e compõe, por exemplo, com a aparição da menina cega, surda e muda. “Nem no inferno tanta tristeza se viu.”

A equipe em quadro nos diz que tudo é mentira. A frase gritada “O povo não tem culpa de passar fome. Não atire!”  é cortada por mais uma quebra do dispositivo que serve como alerta para pensar. Cinema que valoriza a reflexão é isto. E a morte, que é certeira, vem na expressão do rosto de Antão que se confunde com  gozo, afinal, partir deste mundo de tristeza pode até ser bom.

Sertânia é o comentário do século 20 ao século 21 e não deixa de ser profecia para o 22. Em bom português:  hélas!

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