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10º Olhar (2021) – Crime Culposo

Um incêndio mal explicado e um diretor desgovernado (Ou A culpa é do diretor)

Por Ivonete Pinto | 10.10.2021 (domingo)

Em 19 de agosto de 1978, num sábado, quatro homens atearam fogo no Cinema Rex, em Abadan, interior do Irã. Morreram mais de 400 pessoas, entre elas três dos incendiários, na sala cujas portas foram trancadas por fora para impedir que alguém escapasse.

Passados mais de 40 anos, este é um enigma ainda àquele país por não se saber ao certo os motivos de tal ato. Transformado em filmes, peças de teatro, livros, ainda causa indignação pelo fato em si e pela apuração fraudulenta conduzida pela polícia do Xá Reza Pahlevi, que deixou tudo nebuloso, incompreensível (ver o artigo sobre Filmfarsi aqui)

O diretor de Crime culposo (Jenayat-e bi Deghat, 2020),  Shahram Mokri, nasceu naquele mesmo ano de 1978 e tenta dar uma versão engenhosa aos fatos, recriando o que antecedeu ao incêndio. Na verdade, sem informações confiáveis,  restou a Mokri  fabular com grande margem de invenção, usando o episódio  como um leitmotiv.

O filme apresenta várias camadas temporais (três, ao menos), onde os incendiários combinam a ação e já como espectadores do filme exibido no momento, jogam combustível no cinema. Paralelamente, duas jovens, num tempo futuro, em um registro meio realismo fantástico, preparam a projeção do mesmo filme exibido na ocasião,  The deer, do iraniano Masud Kimiai, (1974) quando recebem a visita de militares, que não são bem militares. Dito assim, parece um enredo quase linear, mas o diretor complica a temporalidade ao colocar os mesmos quatro homens no tempo presente. Um dos artifícios para indicar isto é que três dos homens são velhos, então, se entendi bem, a ideia de Mokri foi envelhecer os homens que morreram no incêndio, representando-os com a idade que teriam hoje e deixar com a idade original só aquele que sobreviveu, e quem provavelmente trancou os companheiros  na sala (entre os atores velhos, um rosto conhecido, o do ator e montador Babak Karimi, que já trabalhou com Kiarostami). As mulheres que assistem ao filme, por sua vez, estão usando  o véu, sendo que a proibição de mostrar os cabelos só veio com a Revolução Islâmica no ano seguinte, em 1979. Mas, neste caso, o diretor não tinha muito o que fazer, pois há o aspecto da impossibilidade de representar as mulheres sem o véu, em função da censura. Isto, claro, torna não realista qualquer filme passado antes da revolução (exceção para as opções criativas da cineasta Tahmineh Milani).

Cena de “Crime Culposo”

Em Crime culposo há outras complicações na forma de quebra-cabeças que não vale a pena descrever. Vale citar, sim,  que logo no início o incendiário sobrevivente tenta comprar um medicamento tipo tarja preta e o atendente da farmácia o manda ao Museu do Cinema (que fica em Teerã, aliás), onde alguém venderia o remédio ilegalmente. Curioso, pois  neste museu – magnífico prédio com rico acervo antigo e contemporâneo (que por sinal homenageia Jafar Panahi, condenado, etc. e tal) – por acaso havia há alguns anos um bilheteiro que vendia DVDs piratas de produções iranianas. No filme, tal informação demonstra que no Irã muita coisa acontece  por baixo dos panos. Por outro lado, é mais um  artifício para levar o personagem ao museu e lá, não casualmente, vermos  uma funcionária explicando a um grupo de estudantes como se deu o incêndio no cinema Rex, em Abadan. O fato do incêndio não ter acontecido ainda é apenas um truque à la David Lynch que deixa o filme divertido, mas por si só não funciona.

Cena de “Crime Culposo”

Há mesmo algo disfuncional em Crime culposo. Artisticamente ambicioso, documentalmente ineficiente  e narrativamente confuso.

Como contribuição aos leitores – aos que viram e aos que não viram o filme ainda – fica aqui um trecho da tese de doutorado “Close-up – A invenção do real em Abbas Kiarostami” em que relaciono o incêndio ao interdito islâmico da imagem.

Mesmo que surgido séculos adiante do Corão, o cinema sempre teve esse “defeito de origem”, de não poder se dissociar da imagem, e sem dúvida é transgressor no universo islâmico ortodoxo. Mulás (religiosos, equivalente aos clérigos católicos)  fanáticos, por exemplo, logo no início do cinema no Irã, nos idos do século passado, argumentavam com preceitos da teologia islâmica, que considera inaceitável, além da idolatria, que se simule qualquer ato relativo ao que o próprio Deus criou. A imagem fílmica, então, essência da essência da simulação, seria blasfêmia. Um episódio que marca os preâmbulos da Revolução Islâmica foi entendido por muitos autores ocidentais como demonstração de intolerância à imagem. O episódio aconteceu em agosto de 1978 num cinema  da cidade de Abadan, que abrigava uma das maiores refinarias de petróleo do país. Durante a sessão de um filme iraniano, as portas foram trancadas por fora e o cinema foi incendiado. Algumas fontes dão como 400, outras como 700 mortos. Uma das versões na época dizia que a ordem do ataque teria partido de religiosos ortodoxos. Outras acusaram a polícia secreta Savak (Sazeman-e Ettelaat va Amniyat-e Keshvar), que teria agido por ordem direta de Reza Pahlevi. Mas passados 30 anos se desconhece a responsabilidade pelo assassinato de inocentes espectadores. (disponível em: shorturl.at/anzAZ)

Justamente por este ponto de vista, nos parece que  quase funciona em Crime culposo  a associação do incêndio com o cinema enquanto imagem/mimesis. O cinema no Irã tem uma importância histórica e realizar grande parte das cenas no museu é uma homenagem e uma nesga de teoria sugerida pelo diretor. The deer já era cult antes dele (censurado pelo Xá por conta dos personagens fora da lei) e passou a ser muito mais. Invocá-lo, independente do regime do momento, sempre vai gerar uma crítica política e uma defesa à liberdade.

O problema de Crime culposo é com sua forma meio desgovernada. Há quem possa enxergar lacunas, que por si só, assim como o embaralhamento temporal,  não se sustentariam como valor. Porém não se trata de lacunas e sim de não conseguir ordenar com coesão as camadas propostas. Também pode ser um problema o abuso  do som estridente (e irritante) que  marca a tensão do incêndio sendo preparado.

Noves fora, faltou um tanto de  habilidade à ambição de Shahram Mokri, que assina também roteiro e montagem. Os iranianos continuam devendo a eles próprios um filme à altura do enigmático episódio. Não que precise ser construído em chave realista ou documental, mas ao menos que jogue luz na história, que consiga concatenar os dados que precederam à queda do Xá (incluindo a política nacionalista do ministro Mosaddegh) e o crescimento dos insurgentes religiosos como Khomeini, que vivia no exílio em 1978, já tacando fogo através de discursos enviados às mesquitas através de fitas cassetes. Um  filme que fica só nos malabarismos de linguagem, se desinteressando pelo contexto dos fatos,  não trabalha com lacunas, trabalha com omissão.

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