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Críticas

Halloween Ends

Premissa boa, resultado frustrante.

Por Yuri Lins | 13.10.2022 (quinta-feira)

Halloween ends (EUA, 2022) encerra a trilogia que pretendeu dar continuidade, 40 anos depois, ao primeiro filme da série Halloween, de 1978 e dirigido por John Carpenter. Se a premissa da nova série era a de ignorar totalmente as continuações que foram feitas após o primeiro filme, recomeçar e atualizar a mítica da série para um novo público, sua conclusão termina de forma amarga e sem maiores trunfos, fazendo crer que, ao final, a sua existência só se justifica como uma manutenção da marca.

Depois de tantas mortes causadas por Michael Myers, a cidade de Haddonfield está afundada em um luto profundo, mas não daquele tipo comum que paralisa o corpo e a mente. A fratura causada pelo assassino infecta a vida dos moradores como um vírus da violência, fazendo emergir constantemente ressentimentos e ânimos alterados.  Ao passo disso, Laurie Strode (Jamie Lee Curtis), principal sobrevivente, tenta reerguer sua vida e levar uma vida normal, mas sempre acaba esbarrando na animosidade da comunidade que não a enxerga como uma vítima, mas sim um chamariz para os diversos retornos de Michael Myers. 

Sua condição de pária também é refletida no personagem Corey Cunningham (Rohan Campbell), um baby-sitter envolvido em um acidente em que a criança que estava sob seus cuidados acabou morrendo, fazendo com que ele fosse acusado de assassinato. Mesmo julgado inocente, a cidade passa a transferir a ele o ódio que sentiam pelas mortes perpetuadas pelo assassino em série, o que faz com que Corey progressivamente assuma uma postura maléfica. O seu encontro com Michael Myers fará com que Corey passe a usar o assassino para cometer vingança contra aqueles que o machucaram.

Laurie (Lee Curtis) e Corey (Campbell): dois párias em Haddonfield

David Gordon Green faz um filme de expurgo pela palavra, não muito distante de uma sessão de terapia temperada com movimentos de epifania violenta. Diferentemente do original, que era pautado num trabalho arrojado sobre o campo do visto e do não visto, o seu filme opta por se concentrar no regime de conversação entre as personagens, onde seus demônios são expiados no seio do convívio social.  Halloween ends pretende ser um estudo sobre o ressentimento como um afeto capaz de mobilizar o horror.

Tema interessante, caminho tortuoso. O seu problema reside na incapacidade do realizador em sustentar as suas premissas, de desenvolver uma forma adequada com qual o tema estaria imiscuído de maneira orgânica. O filme se pauta numa mão pesada roteirística em que os diálogos repetem exaustivamente os discursos e a mensagem moral a qual o público deve aceitar. Porém, sem jamais desenvolvê-los no interior da cena e da ação. Halloween ends diz o que quer dizer, mas não o mostra.  

Se o texto discorre sobre os temas almejados, tudo o que é próprio ao gênero do terror – o grafismo do slasher, a atmosfera perturbadora da violência – fica condicionado a servir como constatação das teses apresentadas previamente – algo que fica bastante evidente na construção do personagem de Corey Cunningham, sua transformação de bom rapaz a assassino serial servindo como vetor das preocupações de Laurie Strode sobre o mal que Michael Myers deixou como herança para a psicologia dos habitantes de Haddonfield.

Toda a encenação empreendida por David Gordon Green parte por suprimir as possibilidades das cenas ao funcionalismo do roteiro. Há uma cena que melhor expõe estas insuficiências: Corey, após matar sua primeira vítima, vai até Alysson (Andi Matichak), filha de Laurie, alguém que tenta trazê-lo novamente para os bons sentimentos, e confessa-lhe que havia cometido um crime. O corte para a cena seguinte faz uma quebra de expectativa: eles não estão na cena do crime recém cometido, mas sim no lugar originário de todo o mal na vida de Corey: a casa onde a criança da qual ele era responsável acabou por morrer.  

Matichak (e) e Campbell em cena de “Halloween Ends”

Green constrói a cena utilizando uma dinâmica de videoclipe, com cortes rápidos entre os planos e uma narração feita por Corey que comunica o sentido de perda e horror que aquele lugar resguarda.  Contudo, por sua própria forma entrecortada, toda a cena ganha o aspecto de um interlúdio, sem que ela ofereça tempo suficiente para que a atmosfera daquela casa pudesse impor a mácula que está impregnada em cada parede, cômodo ou mobília.  Ao espectador é dito o que ele deve sentir ao contemplar a cena, mas jamais lhe é permitido ter a experiência da descoberta, do afloramento dos sentimentos quando se está imerso pacientemente em um espaço profundamente entranhado pelo horror. 

Não se enganem: optar por fazer um filme de terror pautado em um regime de conversação filosófica não torna David Gordon Green um Ingmar Bergman mais sangrento. Sua busca por uma comunicação fácil e uma encenação funcional, só deixa ainda mais evidente o estado atual do cinema americano. Green não é estúpido e sabe que, em tempos de um público condicionado pela Marvel e pela Netflix, tempo em que existe uma funcionalidade que permite aumentar a velocidade de exibição de um filme, é quase impossível fazer algo próximo daquilo que John Carpenter empreendeu nos anos 1970. A bem saber, a exploração das forças internas de uma cena, a paixão pelo movimento dos corpos, a fisicalidade clarividente do espaço no trato com o fantástico. Tudo isto é uma língua praticamente morta em uma época em que a indústria fora substituída pelo business e os artesãos pelos burocratas.

Se há qualquer coisa que se salva em Halloween ends, qualquer coisa que instigue a sensibilidade para além das teses, está em sua cena final: derrotado, Michael Myers tem o seu sangue retirado completamente por Laurie e Alysson, seu corpo é profanado e levado em cotejo pelos habitantes de Haddonfield até ser jogado em um triturador. Uma única morte não seria suficiente para exorcizar todo o mal que causou, sendo necessário reduzir sua matéria orgânica à inexistência, cortar qualquer possibilidade retorno, amaldiçoando cada átomo que o constituiu. Aqui, a palavra do expurgo dá lugar a uma ação direta sobre a corporificação do mal, onde há qualquer coisa de potente e de libertador no ator de contemplar o invólucro oco do demônio ser mastigado pelas engrenagens do triturador. Rápido lampejo de criatividade dentro de uma estrutura amorfa.

Por fim, Halloween Ends possui o trunfo de ser um encerramento. A depender do seu sucesso, faça-se votos para que outras mentes mais talentosas possam se apropriar da franquia para a criar obras mais interessantes e que não se restrinjam à mera comodidade. Todo o universo criado por John Carpenter é bastante rico e atemporal, uma herança que precisa ser melhor utilizada. Para o bem do cinema. 

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