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Festivais

55º Brasília (’22): “Amazônia, a nova Minamata?”

Bodanzky traz filme mais recente para voltar a um assunto que não se esgotou em 50 anos

Por Humberto Silva | 19.11.2022 (sábado)

Iracema: Uma transa amazônica (1975) explora os diversos sentidos das palavras “Iracema”, “transa” e “Amazônia”. A virgem dos lábios de mel de Alencar numa transa desmedida; podemos sacar outros sentidos: transar como movimentar dinheiro ilegal e virgem para se referir a alguém inocente; outros sentidos podem ser inventariados para o título deste documentário híbrido de Jorge Bodanzky, que funde ficção e realidade e é uma das obras marcantes em nosso cinema sobre o tema Amazônia.

Malgrado, assunto Amazônia não se esgota para Bodanzky nesse filme realizado há quase meio século. Ele voltou a ele em outros momentos: Amazônia – o último Eldorado (1982), Noés da Amazônia (1991), Navegaramazônia – uma viagem com Jorge Mautner (2005), Era uma vez Iracema (2005). Esse recorte dá a dimensão de seu interesse pelo assunto, que envolve tanto de exploração desmedida de recursos naturais quanto a vastidão de um espaço sem lei, no qual a atuação do Estado é quase uma piada de gosto duvidoso.

Bodanzky, indiscutível, tem seu nome associado ao tema Amazônia mais que qualquer outro diretor de cinema no Brasil. Octogenário homenageado no festival, nos contentaríamos com o balanço de sua obra, suas inquietações, sua compulsão para tratar da Amazônia. E com ela, a importância de preservação do meio ambiente frente ao desalento com que o assunto ganhou as páginas do noticiário nos anos Bolsonaro. Sua obra em si bastaria.

Incansável e surpreendentemente, Bodanzky não veio ao festival exclusivamente para agradecer às homenagens. Ele trouxe embaixo do braço o inédito Amazônia, a nova Minamata? Ou seja, para ele o assunto Amazônia não se esgotou. E nesse “não se esgotou”, mais que mera negação gramatical: os anos Bolsonaro deixaram evidente que a transa amazônica não admite guarda baixa. Com sensibilidade impar para o tema, Bodanzky coloca seu filme mais recente na linha de frente para, infelizmente, voltar a um assunto que não se esgotou, redundantemente, em meio século.

Nesse sentido, no título do filme um déjà vu incômodo. Novamente a palavra Amazônia para compor o sentido repetitivo do adjetivo “novo”. Novo o quê? Visto que em meio século de repetição tal adjetivo ganha ares de ironia. Um pleonasmo que faz ver como a circunlocução do “novo” deve provocar o sentimento de que não há nada novo e, sim, a repetição: nova e desgraçadamente a Amazônia se serve de assunto.

Como havia feito no título de Iracema…, NOVAMENTE o jogo de palavras multiplica os sentidos em Amazônia, a nova Minamata? A interrogação do título, claro, pode ter a interpretação do porquê voltar ao assunto: a Amazônia mais uma vez; mas exige do espectador o sentido da palavra Minamata, grafada, justamente, em maiúsculo. Minamata é uma cidade japonesa que infelizmente se tornou conhecida em razão do desastre de Minamata. A Doença de Minamata é uma síndrome neurológica causada pelo envenenamento por mercúrio. Ela foi detectada em 1956, quando pacientes apresentaram sintomas como surtos psicóticos que pesquisas científicas mostram ter origem nos dejetos contendo mercúrio lançados por uma indústria (consulta google: ignorava a Doença de Minamata).

Esta digressão em meu texto corresponde, igualmente, a uma digressão no filme: na Amazônia, o garimpo de ouro faz uso de mercúrio para agregar pequenos grãos que são garimpados (novamente, consulta google: sou leigo em garimpagem…). A utilização clandestina do mercúrio no garimpo e como consequência a possibilidade de contaminação de rios na Amazônia dão o sentido da interrogação do título do filme. Mas essa interrogação, na verdade, tem um sentido mais assustador: Bodanzky realiza seu filme numa região entre Jacareacanga e Santarém, habitada pelos Munduruku.

Os Munduruku, a relação entre eles e o garimpo ilegal e autoridades governamentais são os dados que Bodanzky colige para realizar Amazônia,… A palavra “Amazônia” e a interrogação no título acendem o alerta: a Doença de Minamata ficou confinada na cidade japonesa, a área total da Amazônia, incluindo outros países além do Brasil, chega perto do tamanho do Brasil, cuja área…; bem, bem, a interrogação pode carregar algo como uma hipérbole; mas uma hipérbole, não baixemos a guarde, numa área de dimensão hiperbólica, onde se procura o Estado, o império da lei, como se o Estado fosse um grão… perdido na vastidão, vale lembrar.

E o jogo com duplo sentido de palavras no título de Amazônia,…, o leitor deste texto, atento, já se deu conta, se expande: Minamata nos lembra que o ouro é extraído de uma mina, que com a utilização clandestina do mercúrio, mata. Esse modo de dar título a filmes com múltiplos significados me faz ver como Bodanzky é sensível a temas de dimensão hiperbólica, tendo fortemente presente a urgência quanto a questões globais num espaço local.

Novamente, minha admissão de ignorância e recorrência ao google: foi a partir de Amazônia… que fiquei sabendo da existência do povo Munduruku. O filme se inicia com uma manifestação de lideranças Munduruku em Brasília, e se encerra com manifestação desse povo, novamente, em Brasília. Nesse meio tempo, Bodanzky colheu depoimentos de diversas lideranças Munduruku. Nesses depoimentos, o foco no tema central do filme: a relação conflituosa e perigosa com garimpeiros, a cooptação a que membros do povo se expõem para colaborar com o garimpo ilegal, e a ineficiência do Estado.

Não interessa a Bodanzky oferecer um estudo etnográfico sobre a cultura, e por conseguinte o modo de vida, Munduruku. Seu propósito é urgente e em torno de um problema com consequências terríveis. Por isso, de modo equilibrado, o filme exibe o processo de extração do ouro e a utilização do mercúrio. Para um leigo como eu, o didatismo na exposição é notável. Em seguida, as dificuldades que um representante da saúde pública encontra para cuidar de doentes com sintomas de que se desconfia sejam resultado de envenenamento por mercúrio. Fechando, temos a reação de lideranças Munduruku a respeito da contaminação do meio ambiente, e a desproteção em que se encontram numa terra sem lei, ou, cuja lei é ditada pelo garimpo.

Procurei aqui, de modo aligeirado, pontuar o que para mim requer uma discussão muito ampla, necessária, urgente e razoavelmente protegida da sanha de quem vê povos indígenas como pedra no sapato: o problema da Amazônia tem contornos indigestos e se põe com desafio em estado de vigilância que não termina. Quase meio século depois de Iracema…, infeliz e tristemente, num evento em sua homenagem, Jorge Bodanzky nos brinda com Amazônia, a nova Minamata?

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