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Festivais

26ª Tiradentes (2023) – Solange

Dramaturgia que busca tirar potência inclusive de situações triviais.

Por Marcelo Ikeda | 30.01.2023 (segunda-feira)

Solange é um exercício de contenção, delicado e duro, direto, sem firulas, filmado em regime de urgência, raro por essas bandas de cá. A trama é simples: a protagonista Solange volta à sua cidade para buscar umas caixas que deixou na casa de alguns conhecidos. A sinopse já nos diz que “Solange quer suas coisas de volta”. O início do filme mostra Solange rodeada por algumas caixas grandes de papelão, quando não sabe o que deixar e o que levar. Lembro um pouco do início (do mesmo dilema) da protagonista de Sexta à noite, de Claire Denis. Esse mote inicial é tudo o que precisamos saber acerca da psicologia da personagem: ela quer levar algo consigo, mas, para continuar, é preciso deixar algumas coisas para trás.

O filme, então, prossegue, por meio de um conjunto de cenas em que Solange se encontra com pessoas diversas para recuperar parte das peças de seu passado. No entanto, o reencontro com Solange não parece ser particularmente amigável, isto é, Solange nunca é totalmente bem recebida. A dramaturgia surge, portanto, dessa fricção entre o corpo de Solange e de seus encontros. Solange é sempre uma estrangeira, visitando de passagem esses lugares provisórios em que ela não habita, e o filme se instaura no interior desse incômodo ou mal-estar disparado por um corpo estrangeiro num espaço provisório em contato-conflito com outro corpo. Em outras palavras, Solange não é livre. Ela precisa promover um acerto de contas com seu passado, e ao mesmo tempo, libertar-se dele para poder prosseguir.

A opção da dupla de realizadores em encenar essas questões ocorre por meio de um cinema quase direto, uma câmera fechada muito próxima ao corpo de Solange, num enquadramento 4:3, que insiste nesse sentimento de asfixia e de enclausuramento. Até chegamos a ver algumas cenas externas, mas não conseguimos reconhecer de que cidade se trata, não importa muito bem. O estilo é cru e duro: a câmera na mão em planos fechados, o estilo semidocumental de cinema direto, o despojamento em termos de arte e luz. Essa crueza, a meu ver, é um dos maiores méritos do filme: a vontade de mergulhar na condição da personagem apropriando-se das condições precárias de produção para torná-las uma potência.

Desse modo, a primeira referência que me vem à cabeça é o cinema de Cassavetes, seu trabalho com as atrizes, a dramaturgia despojada (sem adornos ou adereços desnecessários), seu desejo de mergulhar nas angústias de sua protagonista mas sem os recursos triviais da psicologia clássica quanto ao conexionismo entre causa-e-efeito, etc.

Este último ponto merece um pouco mais de atenção. Por que as pessoas tratam Solange tão mal? Solange nunca é uma mera vítima, mas há algo nesse passado que nunca será resolvido ou desvendado pelo filme. Os objetos que ela procura resgatar parece não possuir muita importância para além do trivial – poderíamos dizer que eles estão ali simplesmente “para fazer cinema”. Solange é sobretudo um cinema do presente, um cinema tátil que surge da fricção entre dois corpos num espaço-outro, onde a dramaturgia busca tirar potência de uma situação cênica até mesmo um tanto trivial. Ao mesmo tempo, a desorientação da personagem é refletida por meio de um uso discreto mas sábio da mise en scène (exemplo: as sucessivas quebras de eixo enquanto Solange vai-e-vem com um conjunto de caixas nos corredores de um prédio, ou quando a câmera circula em torno da personagem bêbada, criando uma certa vertigem).

Solange é sobretudo um filme-de-afetos, embora precisamos nos lembrar que os afetos nem sempre são “aquela brisa de acolhimento delicado e melancólico” mas também podem ser tumultuosos ou daninhos. Talvez o final seja compreensivo demais, e acabe abraçando a personagem numa dança-acalanto, aclimatada por uma espécie de música-tema, que rompe com a abordagem de “grossura franca” de todo o filme. Ao final, o filme não quer julgar mas compreender as angústias de Solange, uma mulher que se assume nas suas dores e delícias e procura viver se olhando de frente, prosseguindo ainda assim. Se o epílogo funciona dessa forma, talvez dilua um pouco da sua potência bruta radical. De todo modo, no Brasil de hoje regido pelo feminicídio, talvez seja importante recuar um pouco e abrir possibilidades da sobrevivência de imaginários. Ainda assim, perdura na minha cabeça a solidão de Solange, essa aposta radical na solidão, que, mesmo com o final-acalanto, permanece até o final. Solange terá que encontrar as chaves para seus dilemas sozinha, sem família, sem companheiro/a e sem amigos/as. Esa solidão extrema do indivíduo sem sociedade, sem partido político, sem movimento social, sem igreja, sem o-que-quer-que-seja. Mesmo a dura Rosetta no final do filme dos Dardennes encontrou alguém a quem lhe dar a mão. Pelo menos Solange parece estar economicamente bem – as questões sociais não são uma chave do filme. Nem tampouco as questões identitárias – mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de pensar que, de forma bastante sutil e delicada, Solange examina, mesmo sem torná-la questão direta ou central, as angústias de uma mulher negra, ainda que de classe média.

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