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Festivais

76º Cannes (2023) – Retratos Fantasmas

Do Recife para o coração de Kleber. Do coração de Kleber para o mundo.

Por Luiz Joaquim | 19.05.2023 (sexta-feira)

O mais pessoal – ao menos em termos explícitos – filme de Kleber Mendonça Filho acaba de nascer. Foi projetado hoje (19), há poucos minutos, em sessão especial, no 76ª Festival de Cinema de Cannes. É do documentário Retratos fantasmas (Ghost Portraits, Bra., 2023), seu quinto longa-metragem, que estamos falando. O diretor, roteirista e, aqui, também narrador, junto com a produtora Emilie Lesclaux, estão nesse instante, certamente, em alto grau de excitação pela experiência da primeira exibição do filme na maior vitrine de cinema do mundo, mas é provável que a emoção maior esteja por atingir o casal por ocasião da primeira exibição da obra no Recife (talvez em agosto e ainda sem local definido).

Isso porque Retratos… é uma aberta carta de amor (e crítica) à capital pernambucana. É como se o cineasta abrisse a porta de sua antiga residência, em Setúbal (zona sul da cidade), onde viveu por mais de três décadas, e convidasse a todos para prestar atenção ao Recife e aos seus cinemas de rua.

No caso, não por uma porta, mas por uma janela: a tela de um cinema. Com o convite vindo por um som retumbante, em Dolby 7.1, em narração off na voz do próprio cineasta. E falada na primeira pessoa. “Eu amo o centro do Recife”, diz Kleber. E repete: “Eu amo o centro do Recife”.

De lá, do velho apartamento, apresenta a sua família – e centraliza a residência pelo corpo e pelo espectro da pesquisadora Joselice Jucá, sua mãe, falecida em 1995 -, para, em seguida, transportar o público para o centro comercial do Recife e, na sequência, mergulhar nas antigas salas de cinema de rua desta cidade, espaços cujas edificações, hoje transfiguradas, assombram aqueles que um dia as conheceram como casas de sonhos (não é assim pelo mundo inteiro?).

São, portanto, três os capítulos que formam Retratos… que, ao final, não se resume a um filme sobre ‘salas de cinemas do Recife’, mas também sobre um jovem atento que viu seu bairro e sua cidade serem transformados ao longo dos anos sob o ponto de vista de uma residência que também passou por mutações. Mutações que refletem as próprias transformações de seus moradores. 

Nesse ponto, Retratos… passa também a ser um espelho da própria filmografia do realizador, visto que era a sua casa a principal locação (às vezes a única) em suas primeiras obras, tendo O som ao redor (2012) coroado tudo isso.

Para essa elegia visual às memórias de Kleber – que, uma vez no bom cinema, acaba por conformar e congregar uma memória coletiva, social –, o diretor usa vasto material de arquivo pessoal e familiar. Material que voltará ao documentário em seus dois outros momentos – o do Recife e o dos cinemas do Recife. E volta, obviamente, com requalificação narrativa. 

Kleber: “Eu amo o centro do Recife”

Kleber, sendo o artista visual que é, desde cedo, a tudo registrava e, com o mesmo empenho, salvaguardava, preservava e cuidava desse seu acervo particular. Retratos fantasmas também dá, nesse sentido, um recado sutil para o Brasil, onde a memória visual, audiovisual ou apenas de áudio são, em termos genéricos, tratadas sem a devida seriedade.

Como um amálgama para congregar a tal “memória coletiva e social”, Kleber se apropria também de imagens de arquivo público, para assim, nos levar para um lugar de elegância, que não existe mais. Como o do hotel que ficava à beira-mar, na esquina da pracinha do bairro de Boa Viagem, onde se hospedaram, nos anos 1960, Janet Leigh e Tony Curtis.

É nesse momento em que a montagem discreta e afinada de Matheus Farias contrasta as fotografias antigas, cobertas pela narração sóbria e pontual de Kleber, com imagens em movimento e barulhentas do trânsito da mesma Boa Viagem, da mesma pracinha, nos dias de hoje. O contraponto é eloquente em si, contextualizando que são mundos diferentes num mesmo endereço.

Entre as transformações físicas de seu antigo apartamento, as de Setúbal e as do Recife ao longo dos últimos 60 anos, está a mensagem, tal qual uma marca d’água nas imagens de Retratos…, que a arquitetura é algo vivo, para os vivos e não deveria ser contra eles.

Sendo contra eles, a natureza saberá fazer a sua parte, tal qual é ilustrado na narrativa da casa vizinha, em Setúbal, definhando após a morte do cachorro Nico (você o viu em Eletrodoméstica e O som ao redor).

Quando Retratos… vai ao centro comercial do Recife, Kleber faz uma passeio fantasmagórico com a sua câmera (a fotografia é dividida entre Marcelo Lordello, Maira Iabrudi e Kleber, sob direção de Pedro Sotero), ao redor do edifício Alfredo Fernandes, na Rua Barbosa Lima (Bairro do Recife).

Foi lá onde ficou abrigado, por cerca de sete décadas, os representantes do Norte-Nordeste de grandes distribuidoras norte-americanas, como a Warner, Fox, Paramount, entre outras…, isso até os anos 2000. 

Enquanto fez as imagens do prédio, o realizador escutou do responsável pelo edifício, “categoricamente”, diz Kleber, que ali nunca funcionou nenhuma empresa de cinema.

O ‘categoricamente’ salienta o orgulho da ignorância. Ressalta o que há de triste no apagar da vida com o esquecimento daquilo que a fazia pulsar. Morre essa vida, morre a identidade daquela construção. Assim como a casa vizinha em Setúbal desconfigurou-se, tomada pelo mato e pelo cupim, foi desconfigurado o edifício Alfredo Fernandes.

“Frevo”, de Lula Cardoso Ayres

O cineasta não perde a chance de alfinetar aqueles que “pensam que o centro do Recife está morto”, lembrando, inclusive, que muitos jovens numa passaram por ali. Nem mesmo no carnaval, o qual ilustra com uma linda performance explicando o passo do frevo, a partir da capoeira e ainda remetendo à pintura Frevo, de Lula Cardoso Ayres.

Não é pouco o que Kleber faz em Retratos fantasmas pelo Recife. Para o mundo querer entender o Recife.

Mas o tom é o da melancolia. E, talvez, a maior delas surja visualmente na desconfiguração que vemos na terceira parte de Retratos…, quando o realizador chega às salas de cinema do Recife.

Ao contrastar as imagens de arquivo (em extraordinário restauro) da inauguração do Cine Veneza (1970-1998), com aquilo em que se transformou o interior do prédio da luxuosa e mais moderna sala de cinema no seu período de atividade, o sentimento é o de lamento pelo desvirtuamento de uma arquitetura concebida em função da beleza para uma arquitetura em função do lucro ligeiro.

O Cine Veneza é, de certo modo, também como a casa de Setúbal comida pelo cupim, é como o prédio no Recife Antigo com a vida apagada pela ignorância do seu responsável.

O mesmo Cine Veneza que um dia ensinou a Kleber sobre a potencialidade do som nos filmes, algo que o cineasta salienta em seu próprio Retratos…, com o destaque para o som de seus passos nas escadas de madeiras rangentes do arquivo público.  

Com o título de Sobre templos e elevações espirituais, nesta última parte do filme, e ao falar do Veneza, Kleber faz a reflexão de que “é triste se apegar a projetos comerciais”, mas contextualiza, “a questão é que a gente passa metade da vida nesses lugares”.

Cine São Luiz, no Recife: Poderes paranormais?

Finalizando, com um tom sobrenatural, o cineasta dá um passeio pelo Recife enquanto se assombra com os poderes paranormais das salas de cinema de rua. 

É lindo.

Mas, ainda que seja lindo, não dá para ter certeza de que o Recife esteja pronto para Retratos fantasmas. E, por isso mesmo, é muito importante que ele exista. 

Em tempo: Retratos fantasmas chega ao Brasil em agosto. A sua casa natural de nascimento no Recife deveria ser o Cinema São Luiz. A Fundarpe teve a infelicidade de passar, em 2022, pelos 70 anos do palácio na rua da Aurora com a sala fechada. Em 2023 terá a oportunidade de dar a festa que o espaço merece e não teve no ano passado. Que tudo dê certo. 

 

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