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Críticas

Ervas Secas (Texto 2)

Diálogos profundos e influências de Anton Tchekhov se destacam no novo filme de Nuri Bilge Ceylan

Por Humberto Silva | 01.03.2024 (sexta-feira)

O turco Nuri Bilge Ceylan está entre os diretores de cinema em atividade que mais crio expectativa em relação ao “próximo filme” (Béla Tarr, se aposentou depois de O cavalo de Turim…). Inicialmente, para mim, um formalista admirável, ganhou esse apreço a partir do impacto que me causou Era uma vez na Anatólia (2011). Assim, aguardei Sono de inverno (2014), A árvore dos frutos selvagens (2018). Não seria diferente com o que acabei de ver: Ervas secas, lançado ano passado em Cannes, aqui em Sampa na 47ª Mostra de Cinema, só agora o pude ver.

Essa circulação anterior gerou textos, comentários e, dado meu interesse por Ceylan, li o máximo que pude. Do que li, faço questão de destacar, aqui no CinemaEscrito, o que Luiz Joaquim escreveu sobre Ervas secas. Destaco igualmente, pois me impressiona a cultura cinematográfica, clarividência e ajuizamento, texto de Bruno Carmelo para o Meio Amargo. As linhas de Joaquim e Carmelo, nos limites da crítica de cinema, elaboradas, pois, no calor da hora, criam um problema para o escriba posterior: como escapar à redundância ao que escreveram como tanta percuciência.

Bem, esse um problema meu… rsrs. Farei, então, uma sucinta exposição do conteúdo da trama. E, a partir dela, pincelar dois pontos de Ervas secas que, creio, valem ser pincelados: a presença, tácita, do dramaturgo russo Anton Tchekhov; as longas, desconcertantes e surpreendentes conversas entre os personagens.

Ervas Secas” reflete influências da obra de Anton Tchekhov: desejos e pulsões sob uma atmosfera de reprimenda.

A trama, então. Há dois planos narrativos que se entrelaçam fugazmente, e em relação os quais não há proeminência de um frente ao outro. Ambos exibem uma situação – para adotar o vocabulário sartriano, uma “situação-limite” na abordagem dos condicionantes da condição humana, quando posta diante da liberdade. Daí, seguindo Sartre, somos o que fazemos de nós mesmos em nossas livres escolhas.

O plano narrativo que abre o filme. Um professor de artes, do meio urbano, dá aulas no ensino médio numa vila distante. Nela, divide moradia com um amigo, originário da própria vila. O trabalho docente, hábitos dos moradores, o cotidiano, o desagradam. Ele, contudo, aparenta resignação, faz seu trabalho, se relaciona cordialmente com colegas, moradores, enquanto aguarda transferência de onde está.

Entre os alunos, de qualquer forma, o professor dá atenção diferenciada a uma aluna. Nessa atenção, a “situação-limite”. A direção da escola controla, rigorosamente, veleidades comportamentais dos adolescentes (a palavra “adolescente, aqui, sob o prisma com que o acidente assim nomeia uma faixa etária). Em uma inspeção de rotina, foi encontrada uma carta de amor da aluna. A carta, por sua vez, acaba nas mãos do professor. Na sequência, a direção da escola recebe a acusação de que o professor tivera comportamento inadequado com a aluna.

O outro plano narrativo mostra o envolvimento afetivo entre o professor, uma professora e o amigo com quem divide moradia. A professora, militante feminista, ao se aproximar dos dois, gera uma disputa discreta e melindrosa entre eles. Nessa disputa, a “situação-limite”: o professor forja uma ocasião para um enlace amoroso casual com a professora.

Ceylan desafia convenções ao prolongar diálogos, exigindo do espectador atenção aos detalhes e reflexão sobre o mundo retratado, criando um filme desafiador.

Na relação entre os três o pêndulo em que se movimentam desejos reprimidos, pulsões incontidas, discrição nos gestos, cuidados com a vigilância social, jogo de afirmação da masculinidade entre amigos. Nada é excessivamente explícito. Com isso, a nós aqui distantes, cabe conjecturar sobre os limites de Ceylan, do cinema turco, para abordar o tema da sexualidade. A liberalização feminina, o modo como os homens lidam com a sexualidade, situa-se até certo ponto numa esfera intangível para a “mentalidade” moderna: prazer, sofrimento e culpa amalgamam-se.

Para conduzir os dois planos narrativos e por os personagens em “situação-limite”, Ceylan serve-se de Tchekhov. Não é a primeira vez que assim ele procede. Em Sono de inverno a referência é explícita. O conto A esposa é base de apoio para aquele filme. Agora, com Ervas secas, Tchekhov desponta no clima, na atmosfera que envolve os personagens. Ou seja, um ambiente no qual se confrontam valores sociais arraigados e pulsões individuais frente a esses valores.

Nessa perspectiva, portanto, a dificuldade para o espectador apreender o caráter dos personagens – suas escolhas, decisões numa “situação-limite” – em um mundo para o qual prazer, sofrimento e culpa cabe a afirmação de que somos humanos, e nada do que é humano nos é estranho (frase atribuída ao dramaturgo romano Terêncio, e que de algum modo é absorvida por Tchekhov). O incômodo que, possivelmente, Ceylan queira provocar no espectador com Ervas secas: na complexidade com que o caráter dos personagens é exibido com suas escolhas, um olhar para si próprio, para sua interioridade. Daí, com um primeiro olhar talvez demasiadamente afeito aos humores “modernos”, ao espectador escape o viés religioso de Ervas secas: quem não pecou, atire a primeira pedra.

Outro ponto que, aqui, pincelarei: as longas, desconcertantes e surpreendentes conversas entre os personagens. Ervas secas tem poucos planos mortos, nele não há música de fundo, nem silêncios ou momentos contemplativos. Também quase não há fortes apelos dramáticos, sequências com efeitos que visariam chocar para chamar a atenção do espectador. Com a câmara praticamente fixa o tempo todo, com enquadramentos rigorosos, austeros, Ervas secas se detém nas conversas entre os personagens.

O filme desafia o espectador com personagens complexos em situações-limite, sem apelos melodramáticos, mas através de conversas profundas, refletindo sobre sexualidade e a natureza humana.

Esse procedimento é característico do estilo Ceylan: Sono de inverno e A árvore dos frutos selvagens o exibem de maneira tão desconcertante e surpreendente quanto em Ervas secas. A se notar: esse um procedimento que é levado ao extremo em Malmkrog (2020), de Cristi Puiu. Essa nota para realçar como, de algum modo, o cinema de Ceylan está em sintonia com o de Puiu.

E, uma observação que, suponho, convém: as convenções narrativas no cinema estabelecem, tacitamente, um tempo de fala aos personagens; mais, a fala dos personagens, tacitamente, não deve fugir ao movimento da trama, do enredo. Ao alongar demasiadamente essa convenção, Ceylan exige do espectador atenção com a qual ele não está habitualmente condicionado: reter diversos momentos daquilo que é falado numa longa conversa.

Acompanhar personagens falando por mais de vinte minutos exige atenção ao que é apenas coloquial, a detalhes na dicção, nos trejeitos de linguagem de cada um isoladamente e, principalmente, a locuções que podem se perder com o fluxo da narrativa. A professora e o amigo do professor são alauitas. Isso é dito numa conversa casual. A professora ensina inglês, mas também, casualmente, diz que está aprendendo curdo. São momentos assim, alheios por suposto ao foco da trama, que informam a existência de um mundo, um mundo para o qual cabe ao espectador buscar sentido. Quem são os alauitas na Turquia com a representação de uma professora que carrega a bandeira da causa feminista? Que sentido a se decodificar para essa mesma professora admitir que está aprendendo a falar curdo?

Nas longuíssimas conversas entre os personagens, a exigência, então, de que o espectador busque sentidos, conjecture; enfim, apreenda o quanto um filme pode ser desafiador, pode lhe dar uma compreensão de um mundo que será perdida para quem se conforma aos hábitos das convenções narrativas. 

Com suas longas conversações, Ervas secas é um filme que fatalmente desagradará quem se alienou aos padrões narrativos convencionais. A trama, o enredo, assim, é tão só condição de possibilidade para que, efetivamente, os personagens falem. Como poucos diretores do cinema atual, Puiu é outro exemplo, para Nuri Bilge Ceylan o cinema propicia um vínculo inelutável entre imagem (kino) e logos (verbo). Resto curioso para imaginar o que dele diria Deleuze, com seu conceito de imagem-tempo. 

 

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