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Críticas

Assassinos Da Lua Das Flores (Texto #1)

‘Ganância familiar’ VS ‘amor familiar’ no nascimento dos EUA moderno.

Por Luiz Joaquim | 19.10.2023 (quinta-feira)

Família, lealdade, cobiça, tradição, traição e redenção (ou quase). A sequência das palavras ajuda a resumir a orientação narrativa em Assassinos da lua das flores (Killers of the Flower Moon, EUA, 2023), o épico de três horas e vinte minutos de Martin Scorsese que chega hoje (19) aos cinemas. 

Na verdade, o conjunto de palavras poderia resolver a orientação narrativa da maioria dos filmes do mestre nova-iorquino. Longe de indicar limitação, a assertiva acima está mais para elogio no que concerne à coerência temática na obra de Scorsese.

O impressionante é perceber como o diretor de O irlandês consegue aplicar esse rumo narrativo, e dele sempre extrair conflitos universais, a partir de uma dramaturgia que respeita o tempo da câmera. Em outras palavras, o tempo da imagem a partir de um enredo que te seduz em consonância com a montagem.

Ernest (Leonardo Dicaprio): um tolo a serviço da violência.

 

Deixando as abstrações de lado, podemos dar um exemplo concreto em Assassinos… sobre o que estamos defendendo.

Acontece quando o protagonista Ernest (Leonardo DiCaprio) emudece ao ser questionado pela esposa Mollie a respeito de qual medicamento ele aplicava nela quando esteve em seu mais debilitado momento durante o tratamento contra a diabetes. 

O mutismo de Ernest e a estupefação estampada em seu rosto, ao perceber por si próprio a dimensão da sua ingenuidade (parabéns, DiCaprio!), é um dos momentos dramaturgicamente mais eloquentes do filme. Sem que nada seja verbalmente explicado, a sequência resume o tamanho da estupidez desse personagem que servia de marionete nas mãos do seu poderoso tio, William Hale (Robert DeNiro).

Coescrito com Eric Roth a partir do livro David Grann, Assassinos… nos coloca no início dos anos 1920 em Fairfax, Oklahoma, ao lado dos Osage, uma população indígena norte-americana pouco representada pela história. Um esquecimento histórico propiciado pela maneira sutil como os Osage foram apagados pelos brancos, ou seja, por uma dissimulada “prestação de serviço” dos brancos como representantes daqueles indígenas diante da lei. 

Fairfax, Oklahoma, é o lugar onde o petróleo jorra abundantemente, dando forma à rica herança do povo Osage.

Os Osage eram donos de terras que jorravam muito petróleo, numa intensidade igual a que brotavam as flores embelezando os seus campos. A informação na abertura do filme indica que aqueles indígenas formaram, naqueles anos, o grupo social per-capita mais rico do mundo. 

O resultado foi a inversão de uma ordem social que nos mostra aquele povo nativo norte-americano gozando dos prazeres da riqueza dos brancos. Elegantes nas vestimentas, morando confortavelmente, pilotando aviões e trafegando em seus carros luxuosos, sempre guiados e servidos por algum empregado branco.

É como motorista de Mollie que Ernest a conhece e começa a cortejá-la influenciado pelo seu tio Hale. Afinal, o dote da moça não é pequeno. E, ainda que Hale seja um rico pecuarista, a ambição em assumir os negócios da família de Mollie é maior que a sua riqueza. 

O bobo Ernest se apaixona legitimamente por Mollie, casa com ela e forma uma família, mas é a seu tio, com as suas articulações criminosas de extermínio para acelerar a extinção da família de Mollie, que Ernest obedece cegamente.

Mollie (Lilly Gladstone): uma presença marcada por coragem e pelo orgulho.

A aparente tranquilidade com a qual Ernest executa as ordens do tio só ajuda a reforçar a idiotia de seus atos contra a própria esposa, que tanto ama, e tornar o momento mais decisivo de sua vida em algo épico: ter a coragem de confrontar a figura paterna que é o seu tio Hale, a quem chamava de Rei quando criança.

Até chegar o tal momento, Assassinos… vai nos mostrando a errática transformação desse leal escudeiro de Hale em uma espécie de soldado que começa a desconfiar do seu general. Uma sequência também primorosa mostra Ernest assinando, descaradamente acuado, um documento que poderia ser entendido como o seu atestado de óbito.

Numa perspectiva mais aberta sobre Ernest, esse bobo obediente, levado pela influência da família, que vai como um cego cometendo crimes sem percebê-los grave, podemos localizá-lo, num pulo de 100 anos a frente, e encontrá-lo encarnado hoje nos nossos vizinhos de porta, que invadem o Supremo Tribunal Federal brasileiro instigados por uma espécie de ideologia familiar sem nem compreendê-la criminosa.

Ernest ama Mollie, mas essa paixão não o impede de cometer crimes contra a família dela.

Em meio a tanta ganância, brutalidade e estupidez, Scorsese nos apresenta um pouco à cultura dos Osage, com a atriz Lily Gladstone dando vida a Mollie e lhe compondo uma galhardia e uma altivez que poucos brancos conseguem alcançar.

Nesse quesito, a abertura de Assassinos…, com a representação do sepultamento feito pelos Osages de uma simbólica e sagrada adaga prenuncia uma tragédia para o seu povo. De forma cinematograficamente sagaz, Scorsese, na sequência seguinte, vira a chave do humor (e da estética) e contrasta a tristeza do ritual com a imagem alegre daquela que viria a ser a suposta fonte da felicidade para os Osage: um poço de petróleo jorrando pelos ares. 

Não precisa ser muito inteligente para imaginar que dali surgirão os conflitos que vão nos guiar ao longo da fluída duração de Assassinos… Uma obra tão bem guiada por Scorsese com ele próprio, inclusive, na bela sequência final, nos reforçando o valor da ancestralidade. Da família, enfim, esse tema eternamente caro ao baixinho de Nova Iorque.

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