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Viva Celso Marconi

Humberto Silva joga luz, com cuidadosa apreciação, sobre a figura de Marconi a partir de dois curtas

Por Humberto Silva | 25.01.2024 (quinta-feira)

nota do editor: na última sexta-feira (19), o realizadores Paulo de Sá Vieira e Helder Lopes disponibilizaram gratuitamente no YouTube seus curtas-metragens Apolo (2022, ficção, clique aqui) e o documentário Um filme com Celso Marconi (2022, clique aqui). O crítico e professor paulista Humberto Silva joga luz, com cuidadosa apreciação, sobre os filmes e sobre a própria figura de Celso Marconi como intelectual valiosa para a cultura brasileira. Acompanhe:

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A cultura brasileira – a crítica de cinema aqui em destaque – revelou personagens que catalisaram em razão do forte impacto que causaram com suas intervenções.  A presença de Paulo Emilio, Paulo Fontoura Gastal, Walter da Silveira, Celso Marconi vai além do ofício pelo qual se impuseram em nosso cenário cultural: a crítica de cinema. Personalidades carismáticas, o legado delas transborda, contagia, inspira, se oferece como objeto de culto…

Recentemente falecido, Celso Marconi foi o último remanescente de uma leva de críticos dotados de enorme carisma que atuou a partir de meados da década de 1950. Fez parte, pois, de uma geração que viu o surgimento da Nouvelle vague no mundo e do Cinema novo no Brasil. Uma geração para a qual o cinema era uma maneira de pensar sobre o mundo, a sociedade, a política, a psique humana. Uma geração que escreveu sobre cinema numa trincheira delimitada pelo golpe militar de 1964.

Pernambucano e fortemente ativo na cena recifense já nonagenário, Marconi pode ser visto em dois curtas que se destacam como documentos que retratam não só seu envolvimento com o cinema, mas principalmente uma maneira de pensar a arte cinematográfica. Os curtas são: Apolo (2022), dirigido por Paulo de Sá Vieira, e Um filme com Celso Marconi (2022), dirigido por Helder Lopes e Paulo de Sá Vieira. Bem jovens, Helder e Paulo de Sá mantém uma relação reverencial com Marconi. O que de modo algum compromete os curtas que dirigiram. O propósito de registrar Celso Marconi é um gesto que em si prescinde de qualquer ponderação. Mais, a figura de Marconi é um imã com tal capacidade atrativa que qualquer digressão além dele próprio é perfumaria.

Assim, os dois curtas – Apolo com pretexto falsamente ficcional e Um filme sobre Celso Marconi com intenção de metalinguagem: a preparação do filme que se está vendo… – se completam e fundamentalmente exibem Celso Marconi. Para o espectador, revela-se como o longevo crítico pensa, sente e vê o cinema. Para o espectador, nos dois curtas, o espaço privado, o cotidiano, as inquirições, devaneios, fragmentos de memória de um crítico que atravessou gerações. São filmes, por isso, nos quais o cinema é objeto de reflexão e que oferecem reflexão sobre como pensá-lo tendo por referência o “personagem” Celso Marconi.

Bem, nesse “personagem” em que se misturam cinema e vida há constantes que entendo valem ser mencionadas. A primeira coisa que salta os olhos é a presença solitária. Quando me referi acima a “devaneios”, pensei em Rousseau e seus Devaneios de um caminhante solitário. Ao contrário de Rousseau, contudo, Marconi não expressa ressentimento em relação à vida, pelo contrário. Mas, sim, não há como não notar sua caminhada pelos cômodos de sua casa sozinho, sem outra presença além dele. Em seu cotidiano, não há qualquer menção a uma companheira, filhos, irmãos… Em filmes que exibem sua intimidade, seu perambular entre espaços da casa em que mora, a forte impressão de um solitário. Na entrevista para os realizadores de Um filme…, ele menciona que só um monge se afasta completamente do mundo. E ele nega para si essa condição. No filme, quando fala, o enquadramento fechado em seu rosto. E eu, como espectador, pensei: a imagem de um homem que se conforta com a solidão, que se possível escapa ao burburinho da vida pública e, a seu modo, é feliz em seu espaço doméstico…

Cenas de “Um filme com Celso Marconi”

Sobre felicidade, aliás, e isso provavelmente em razão de suas leituras filosóficas, seu semblante transparece um quê de ar estoico. Ele não parece nenhum pouco incomodado, aborrecido, pessimista, ou raivoso em relação à vida, ao cinema. Ele parece, sim, animado, entusiasmado com o que faz, com o que a vida possibilita, com os meios que dispõe para fazer o que o apraz. Ele é atencioso, gentil e comprometido com os filmes, com o diálogo que estabelece com os diretores. O ambiente em que circula é, de fato, acompanhado por uma serenidade estoica. E justamente nessa serenidade noto em suas palavras, em seus gestos, certo alheamento, uma postura arredia em relação ao presente. Algo como as coisas são como são, o movimento da história, do mundo, independe de minha vontade, por isso cabe a mim o que se oferece.

É nesse sentido que vejo sua posição sobre as salas de cinema. Posição que causa horror em quem defende a sobrevivência das salas de projeção como sobrevivência do cinema. Para ele a relação cinema, sala de projeção e culto teve sentido em uma época que já passou, faz parte do passado. Há, com esse olhar, um viés nostálgico. Os dispositivos que permitem a experiência, portanto o culto, foram substituídos. Marconi, estoico, não se ressente com as mudanças, pelo contrário, procura tirar proveito do que se apresenta, ver três, quatro filmes por dia, isolado, em plataformas de streaming, e escrever no Facebook sem qualquer compromisso além de si mesmo e indiferente ao alcance que possa ter.

O sentimento de que o culto à sala de cinema acabou, não à toa, é explicitamente exibido na referência a No decurso de tempo (1976), de Wim Wenders. Nesse filme, Wenders mostra um técnico de projetores de cinema que perambula em cidades alemãs para consertar projetores enferrujados, que serão usados em salas vazias. Em Apolo foi recolhida justamente a fala do projecionista de um cinema, lamentando as salas vazias enquanto o técnico se mantém impassível a seus lamentos. Em seu monólogo, o projecionista lembra quando projetou Nibelungos – a morte de Siegfried (1924), de Fritz Lang.

Interessante notar, então, nos dois curtas, imagens de salas de cinema de rua de Recife, cartazes de filmes antigos, projetores, câmaras, enfim, tudo que deu sentido a um mundo que não mais existe. A fala de Marconi nos filmes de Helder e Paulo de Sá, reverbera de algum modo os Retratos fantasmas (2023), de Kleber Mendonça. Não suponho, até pela diferença de gerações, a posição dos dois se afine. Mas olhar o passado como “fantasma” creio gerar neles interrogações de fundo similares.

Set de “Um filme com Celso Marconi”

Sobre a posição de Marconi, ainda, seus interesses por cinema se concentram na experiência visual, e esta se mantém para ele independentemente do meio, dos dispositivos, da existência de uma sala. O culto passa, a vida passa, os meios para que uma experiência seja vivada passam, mas a experiência em si efetivamente sentida é o que ele procura reter da arte das imagens em movimento. Curioso a esse respeito o movimento da história e na velhice Marconi dispor de meios para que, isolado, pudesse fruir a experiência de ver um filme em casa, como um monge, alheio ao burburinho das aglomerações sociais. Curioso porque tão só a contingência propiciou essa experiência. Mas, concluo com seu ar sereno, seu sentimento estoico em relação à vida, a contingência revelasse outra configuração do mundo, não existissem plataformas de streaming, pelo temperamento que revela em Apolo e Um filme sobre Celso Marconi, Celso Marconi não seria menos feliz. É essa sensibilidade para não desejar o que não está em seu poder que, assim vejo, subliminarmente reside o grande feito captado pelos lentes de Helder Lopes e Paulo de Sá Vieira. Figura absorvente em nossa cena cultural, na cena cultural recifense, por seu legado Celso Marconi merece os curtas em que protagoniza; igualmente, os curtas para mim estão à altura dele.

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