Zona de Interesse (Texto 2)
A cumplicidade dos que assistem
Por Ivonete Pinto | 19.02.2024 (segunda-feira)
Se uma das funções da arte é provocar, Zona de interesse (The Zone of Interest, EUA/RU/Pol, 2023) nasceu com este propósito. Centenas de filmes foram feitos tendo o Holocausto como tema direta ou indiretamente. Todos são necessários, não só para que a história não volte a se repetir, como para que deles se extraiam reflexões sobre a alma humana. Sobre como nós somos capazes de agir em situações-limite. E como evitamos agir por covardia.
Jonathan Glazer optou por concentrar o enredo na família do construtor e comandante de Auschwitz, Rudolf Höss (Christian Friedel), sob o ponto de vista de seus membros. Nesta escolha, o espectador vê o que a família vê. A esposa Hedwig (Sandra Hüller) e os filhos, incluindo um cão inquieto, ouvem os gritos e tiros vindos dos pavilhões do campo de extermínio; enxergam apenas uma torre de vigilância, as pontas dos pavilhões e chaminés com fumaça preta. O fora-de-campo (usando a definição de Noël Burch) é o leitmotiv da linguagem do filme. O que não vemos, no entanto, está narrativamente ligado ao que está enquadrado e tem rendido os mais enlevados textos. Há quem tenha considerado uma atitude artística arrojada e corajosa, há quem tenha encontrado ali um problema ético. Não mostrar o “contexto” seria uma impostura, um desrespeito à história dos judeus mortos.
Homens, mulheres e crianças esquálidas, câmaras de gás, fornos crematórios, etc., fazem parte do repertório de imagens de quem já viu filmes ficcionais, documentários, reportagens, fotografias das mais diversas situações envolvendo os campos de concentração. Crianças talvez ainda não tiveram contato com estas imagens, mas mais cedo ou mais tarde serão apresentadas a elas em títulos como A Lista de Schindler (1993). Ele, o longa de Steven Spielberg, até foi banido em alguns países, como Egito, mas por mostrar pessoas sem roupa e não pela violência das imagens. Costuma ser usado em escolas para ilustrar a Segunda Guerra.
Ou seja, soa ingênuo cobrar que Zona de interesse mostre o contexto, quando este é por demais conhecido. A provocação de Glazer está justamente em possibilitar que o público imagine o que acontece no campo a cada grito, a cada tiro, a cada vez que uma fumaça preta sai das chaminés. Imagens produzidas em estúdio podem ser menos aterradoras do que nossa imaginação motivada a partir das sugestões dos sons. Também uma fração de diálogo, aquele que trata da punição sofrida por alguém que surripiou uma maçã, vai compor a imaginação do público e da personagem que a ouve. E há uma cena em especial, logo o início do filme, que causa estupor: empresários oferecem ao comandante uma nova tecnologia para queimar os corpos com mais rapidez e eficiência. Afinal, já eram 12 mil corpos por dia (por dia!) que precisavam de uma solução. Um diálogo com terminologia típica de CEO que garante o ganho em escala. Não é preciso ver os fornos.
O tom irônico tem origem. Zona de interesse foi baseado em um romance de Martin Amis (parece que pouco do romance foi mantido pelo roteiro), que foi recebido como uma sátira quando lançado há 10 anos: a família do oficial da SS vive um conto de fadas em termos de ascensão social, usufruindo de um jardim dos sonhos, tendo apenas um muro a separar do campo de extermínio. Independente do que manteve do livro, Glazer ficou dois anos pesquisando o que acontecia em Auschwitz e nós sabemos, acumulando informações, que de fato dezenas de grandes empresas participaram ativamente e se beneficiaram da mão-de-obra dos campos. Grandes marcas, citadas no filme inclusive, como a Siemens, que até hoje funcionam. Então, quando assistimos a cena com diálogos que parecem improváveis, só que não, sabemos que o horror do contexto pode assumir diversas formas. Corpos empilhados e fornos povoam esta e outras cenas na cabeça dos espectadores.
E para quem ainda sente falta de “contexto”, Zona de interesse termina com [spoiler] uma sequência documental, onde Auschwitz aparece nos dias de hoje como museu. Estão lá os pertences dos judeus mortos, seus calçados, suas roupas, seus cabelos. Como Glazer filma o museu é seu comentário mais descritivo, embora também em chave irônica.
Como mostrar – Desta maneira, fica claro que o diretor quis dar uma abordagem particular ao terror ao deixá-lo, enquanto imagem, no fora-de-campo, ao mesmo tempo em que oferece outros tipos de entrada para o espectador quanto à dimensão daquele horror.
Não que Glazer tenha sido totalmente original. Lembremos que o um campeão de bilheteria e de prêmios, A Escolha de Sofia (Alan Pakula, 1982) também ia no mesmo caminho. O que tínhamos era a casa do comandante, Sofia (Meryl Streep) trabalhando como doméstica para ele. Tínhamos a rotina da casa, o comportamento do comandante, sua esposa e filhos, e era isto que interessava à história.
Outra barbárie, neste caso, perpetrada pelo regime de Pol Pot no Cambodja, levou Rithy Panh a não encenar os acontecimentos vividos por ele e sua família em A Imagem que Falta (2013). Na verdade, encenou, mas utilizando bonecos e cenário de argila. Ele não teve condições emocionais de chamar atores para reviver o que ele próprio passou. Mostrou de outra forma.
E a questão é mesmo essa: se trata de como mostrar. László Nemes propôs em O Filho de Saul (2015) uma estética através de primeiros-planos e closes. São raros os planos abertos em que aparecia o interior de Auschwitz. O recorte estava no olhar de Saul tentando achar uma forma de enterrar seu filho morto e nos judeus do Sondercommand, que trabalhavam para os nazistas. Uma escolha arriscada em termos de dramaturgia, pois é difícil gerar empatia para com traidores. Ele arriscou, recebeu um Oscar, propiciou debates acalorados no mundo todo e cumpriu seu papel de oferecer uma outra perspectiva do horror.
Até mesmo a referência mais obrigatória quando falamos de questões éticas no cinema, mais exatamente no documentário, Shoah (1985) apresentou uma forma de mostrar, sem mostrar. Claude Lanzmann dirigiu suas já famosas 10 horas de filme apenas com depoimentos de sobreviventes dos campos de concentração. Gerou toda uma controvérsia sobre o direito que se tem ou não de usar imagens de arquivo. O documentarista foi radical nesta defesa até o fim de seus dias.
Seria gastar energia indo contra ou a favor da posição de Lanzmann, pois para um evento tão impressionante como este, ter várias abordagens significa que o tema continua sendo de interesse. A vida é bela (Roberto Benigni, 1997) foi crucificado (apesar do Oscar) por tirar humor e poesia do Holocausto. Autoritários de plantão estão sempre condenando o que não encaixa no seu conjunto de valores morais. Supõe-se que trazer o tema mais uma vez para debate é o ganho maior. A propósito, indico entre vários artigos que têm saído sobre o filme, um que ao invés do tom inflamado, busca dar informações sobre a produção de Zona de interesse. Que enriquecem a apreensão do filme. Refiro-me ao texto de Eduardo Escorel na Piauí de 15 de fevereiro. Não deixe de ler também o artigo de Luiz Joaquim neste site, que chama a atenção para aspectos da trilha sonora com forte poder narrativo.
Para informações factuais da vida da família Höss, há inúmeras reportagens e documentários na Internet. Evidentemente, ficaram fora da obra de Glazer episódios da “gestão” de Höss em Auschwitz, que dariam um filme por si só, como o estilo de punição aplicado por ele, que levou à morte milhares de prisioneiros. Inclusive ficou de fora o fim da guerra, como o oficial foi enforcado, de como sua querida esposa, que adorava morar naquele lugar cheio de flores e cheiro de carne humana, escapou com vida e foi morar nos Estados Unidos.
O extracampo do filme é imenso e depois de darmos todas as voltas possíveis em torno da história, caímos no essencial: que tipo de ser humano compactua com o que aconteceu no Holocausto? O mesmo tipo que compactuou com os crimes de Stalin contra, entre os outros, os ucranianos? O mesmo tipo que hoje (hoje, hoje) faz vistas grossas a Putin, o assassino descarado? O mesmo tipo que acha que, em nome do direito sagrado de Israel existir, exterminem-se milhares de crianças palestinas?
Enquanto discutimos o fora-de-campo, o horror estatal coexiste com nossas consciências. E não há Oscar que atenue as responsabilidades de quem é contemporâneo de governantes tiranos e carrascos. Aquela frase “o que vocês fizeram para impedir?” deveria ecoar em nossas cabeças o tempo todo, afinal, o que estamos fazendo?
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