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Festivais

47ª Mostra SP (2023) – Ervas Secas

Nuri Bilge Ceylan, mais uma vez, confirma por que é um dos diretores mais fascinantes da atualidade.

Por Luiz Joaquim | 26.10.2023 (quinta-feira)

SÃO PAULO (SP) – Temos difundido sem nenhum pudor, e quase com orgulho, não só o nosso interesse pelo cinema de Nuri Bilge Ceylan como também a convicção de que o realizador turco é, há pelo menos cinco anos, um dos mais interessantes cineastas em atividade no mundo. Senão, podemos arriscar, o mais interessante. 

Os paulistanos tiveram, ontem (25) à noite, a chance de conferir a primeira (de quatro) sessões do seu mais recente trabalho – Ervas secas (Kuru Otlar Üstüne, Tur./Ale./ Fra./ Sue., 2023) – dentro da programação da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E, vendo o filme, o público da Mostra talvez tenha percebido o porquê da audácia em nossa superlativa assertiva.

Seria importante, contudo, conhecer o histórico criativo de Ceylan, vendo, pelo menos, os seus Era uma vez na Anatólia (2011), Sono de inverno (2014, Palma de Ouro) e A árvore dos frutos selvagens (2018), para, talvez, compreender a coerência e sofisticação do seu cinema. 

Ou não. 

“Ervas Secas: diálogos intensos abordam a divisão de posturas diante das urgências do mundo.

Ter acesso a Ervas secas já joga uma boa luz sobre aquilo que é caro ao realizador e em como ele ilumina esse valor por meio de artifícios cinematográficos. Mas, é verdade, neste recente trabalho Ceylan privilegia um tanto mais o diálogo e arrisca-se menos na manipulação da imagem. 

O diálogo está lá dando corpo aquilo que permeia o cerne de sua temática: a ética, a moral, a coerência. Já a imagem, em sua beleza plástica combinada ao uso do som, ou pelas estratégias da montagem, está lá para nos lembrar que somos humanos.

Se no filme anterior Ceylan nos provocou no campo da validade da arte, criando atrito entre um aspirante a escritor e um escritor famoso, para daí também debater sua relação com a família, com a sua cidade natal e religião, em  Ervas secas o embate intelectual está dividido em dois blocos.

No primeiro, o professor secundarista Samet (Deniz Celilogiu), já fatigado pelo trabalho obrigatório há quatro anos numa remota e gélida vila na Anatólia, se vê acuado pela acusação de ter tocado de maneira inapropriada em duas alunas. 

Uma delas seria Sevim (Ece Bagci), menina que se destaca aos olhos de Samet pela sua sagacidade e interesse pela vida para voar além daquilo que o habitual vilarejo oferece. Samet leciona arte. Uma disciplina para qual a ideia de liberdade é uma ferramenta em si.

O ponto de partida da confusão envolvendo a acusação toma início numa inspeção feita pela escola sobre os pertences dos alunos. Uma carta de amor escrita por Sevim (não se sabe para quem) é confiscada e vai parar nas mãos de Samet. O professor lê a carta, mas mente para a chorosa Samet, com a intenção de tentar reconforta-la, dizendo para ela não se constranger pois a carta teria sido destruída mesmo antes de ele lê-la. 

A menina não acredita no professor e aquilo que era envolto em admiração mútua torna-se uma relação conflituosa. 

Ceylan utiliza paisagens amplas para contrastar com a intimidade dos diálogos, realçando a dualidade da experiência humana.

Nesta primeira provocação, Ceylan nos apresenta todo um calvário vivido por Samet por conta da infundada acusação, sento ele, portanto, uma vítima de uma mentira, mas sendo ele também o autor de uma mentira. E é esse seu inicial mal imoral que irá catapultar todas as outras consequências que lhe assombrarão.

No entorno dessa briga que oprime a consciência de Samet, Cylan aproveita para revelar um pouco mais da personalidade do protagonista e da sua visão cética sobre o futuro daquelas crianças “condenadas a plantar batatas e beterrabas” pro resto da vida.

Numa segunda provocação, Ceylan nos coloca numa disputa amorosa entre ele e o amigo Kenan (Musab Ekici) pela atenção da professora Nuray (Merve Dizdar, melhor atriz em Cannes.

Nesse contexto, por meio de uma conversa longa e intelectualmente desafiadora entre Samet e Nuray durante um jantar, os aspectos céticos que guiam Samet tornam-se mais salientes. Mas aqui o espectro de suas observações vai além das questões da vila com o seu atraso cultural segurando as crianças àquele lugar. 

Militante da causa feminina, Nurav quer saber a que “ismo” Samet pertence. No que ele acredita como convicção para melhorar a sociedade.  Ele se opõe, veementemente, a ser enquadrado sob essa ótica e mais, critica aqueles que se aquecem no conforto de um rebanho ideológico para justificar suas ações individuais.

Em função da velocidade, intensidade e profundidade dos diálogos e raciocínio do casal, o espectador que piscar aqui poderá perder o fio da meada de um dos diálogos mais provocadores do cinema atual, sintetizando como o mundo está dividido com dois tipos de pessoas com posturas distintas em frente às urgências do mundo.

Uma é aquela pessoa que encara as conquistas sociais como fruto de um esforço coletivo alinhado ideologicamente (Nurav), e as que questionam e encaram estes esforços com reticências ao refletir sobre o que os ciclos ao longo da história da humanidade nos ensinam (Samet). 

Para Samet, “a repetição da história representa o cansaço da esperança”.

Nos diálogos de Ceylan, a força dos argumentos cria um equilíbrio, deixando o espectador como juiz diante de apelos ideológicos diversos.

O que há de encantador nos primorosos diálogos construídos por Ceylan está na força dos seus argumentos, igualmente coerentes e convincentes em cada um dos lados da disputa narrativa. É assim em toda a sua obra. Não há vencedores ou vencidos aqui, ambos lados possuem alguma razão, ao seu modo, e o espectador será o grande juiz diante de tantos e tão distintos apelos ideológicos.

Ervas secas não se resume a esses dois contextos. Há outro que se desdobra para um exemplo concreto de um guerrilheiro local e das consequências de suas ações.  

E há, por fim, no quesito estético, uma quebra da composição dramática no enredo ficcional em um dos momentos chave da relação entre Nurav e Samet. Acontece quando este último sai do ambiente composto pela direção de arte do filme e começa a perambular pelo set de filmagens, desvelando ao público os bastidores do estúdio onde tudo foi montado.

É um choque e parece querer dizer que a sequência da cena íntima que esperávamos ver, pela continuidade dos acontecimentos entre Nurav e Samet, pertente apenas aos dois personagens, não cabendo a nós testemunhá-la.

Para a nossa felicidade, a Imovision tem distribuído no Brasil os títulos de Ceylan. É o que acontecerá com Ervas secas. Agora é esperar para ter acesso nas salas de cinema a um dos melhores filmes que você verá em 2023.  

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