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Críticas

Oh, Canadá

Schrader disseca a farsa da reputação e revela o grotesco sob a máscara da celebridade.

Por Humberto Silva | 06.06.2025 (sexta-feira)

O cineasta roteirista Paul Schrader é um dos grandes nomes pouco lembrado do momento Nova Hollywood do cinema norte-americano. Melhor: exceto cinéfilos, aficionados por cinema hollywoodiano dos 60-70, desconfio que para novas gerações a marca Schrader não diga muito… talvez eu me engane…, não obstante. Nesse eventual engano, pois, um recurso de estilo. Isso para abordar sua recente realização, Oh, Canada, baseado em livro de Russell Banks, recentemente falecido, a quem o filme é dedicado. Devo dizer que ignorava autor e livro, Foregone (Abandonado, Esquecido…), portanto não tenho como dizer sobre a relação livro/filme.

Como ponto de partida, em Oh, Canada dois assuntos recorrentes no cinema recente hollywoodiano: a fixação nos anos 60-70 e, em decorrência, as feridas não suficientemente cicatrizadas da Guerra do Vietnã. Schrader nesse filme “conta a história” de um importante e celebrado diretor de documentários expatriado que, idoso e com câncer terminal, se permite filmar numa entrevista em que exaltaria, como em outras circunstâncias de sua vida, seu heroísmo ao recusar o recrutamento para servir ao Exército na… Guerra do Vietnã.

Fragmentos de memória, confissões entrecortadas e vozes sobrepostas: Schrader recorre ao flashback pouco convencional para revelar não um herói, mas um personagem marcado pelo autoengano, pela fuga e por decisões moralmente abjetas.

Bastante debilitado, sob cuidados médicos e efeito de remédios, frente à equipe de produção liderada por um ex-aluno e de sua companheira nos últimos anos de vida, o celebrado documentarista aproveita a ocasião para uma melancólica e estabanada confissão. Trata-se, assim, de um anticlímax, com revelações inesperadas de um passado pouco glorioso e detalhes sórdidos da relação com mulheres enganadas por ele. Seguindo um padrão narrativo até previsível, Oh, Canada assumiria a feição de um flashback como tantos na história do cinema. Mas logo o espectador se dá conta de que Schrader propõe um flashback pouco convencional. A reminiscência narrativa começa com a voz-over de seu filho, o qual só voltará a vê-lo trinta anos depois da despedida no aeroporto. O foco narrativo, contudo, pula do filho para o pai, que, por sua vez, intercala confissões diretas para os presentes no momento da filmagem da entrevista e lembranças casuais de seu passado.

A premissa de Oh, Canada é precisa. Exibir como uma reputação pública esconde um personagem cujas decisões cruciais em sua vida foram abjetas. Exibir como, por trás das aparências, existe alguém cujo reconhecimento nobre de suas ações encobre um caráter asqueroso, um pulha, enfim. Mas que, com a iminência da morte decide “desconstruir” impiedosamente sua imagem pública. Interessante realçar na composição desse personagem o uso da iluminação discreta (low key) no ambiente de confissão: optou-se pelo uso de luzes direcionais e sombras profundas o que cria uma atmosfera de angustia e melancolia que se acentua quando o enquadramento destaca o rosto do protagonista. Simbolicamente nas sombras e na luz difusa, muito do desconforto de sua condição presente e de sua prestação de contas com o passado.

Ao intercalar presente e passado sob uma estética de melancolia e desencanto, Paul Schrader desmonta a aura da celebridade e questiona a autenticidade das narrativas que escolhemos contar – e ouvir.

Oh, Canada me faz ver – e acho isso extremamente importante no propósito de Schrader – o quanto há no deslumbramento de figuras públicas cuja vida privada é um “poço de contradições”. Isso não seria obviamente despercebido. Nisso obviamente nenhuma novidade. Exceto, por óbvio, conjecturarmos sobre quem foi Paul Schrader no conturbado ambiente dos 60-70, ambiente em que, como o protagonista de seu filme, ele foi um personagem. Ou seja: no personagem do filme, provavelmente muito dele mesmo, devidamente escondido e revelado na ficção, muito do que ele, acredito, teria visto em personalidades célebres do universo hollywoodiano e de quem possível e inocentemente cultuamos. Fugir de Hollywood para o Canada, nesse sentido, não deixa de conter indícios de um ardil para escamotear algo tão próximo quanto desagradável para expor. A quem caberia a carapuça nos áureos anos da Nova Hollywood? Nova Hollywood, aliás, cujo espectro se faz presente no roteiro de Oh, Canada.

Se visto nessa perspectiva – não para ser tomado como um produto que agrada ou não quando consumido –, Oh, Canada é um filme inquietante. As intenções de seu autor, claro (no claro-escuro), podem ter sinais trocados. No jogo do mercado pode-se comprar um produto – o ingresso – e, simultaneamente, fingir não perceber o sentido profundo da confissão: até que ponto o celebrado documentarista, doente, debilitado, sob efeito de remédios, não exibe exatamente a verdade ingloriosa de suas escolhas, nem mente quanto ao enfado e peso da celebridade que o envolve, mas tão só, frente à morte, desabafa ao expressar o absurdo, o grotesco de sua condição existencial? Sendo essa uma perspectiva de “leitura” de Oh, Canada, para o espectador não haveria somente a condição existencial absurda do protagonista, mas igualmente a de todos em sua volta, incluindo sua companheira no mesmo plano que outras que passaram por sua existência. Enfim, todos que participam da grotesca encenação de uma entrevista que não é mais do que espetáculo para a sociedade de consumo.

Não faço a menor ideia se Paul Schrader teve ou não presente para si essa possibilidade de “leitura” de seu filme, no alto de seus 79 anos. Essa, contudo, a impressão que me ficou de Oh, Canada. Assistir a este filme sem ter presentes lições dos teatros do absurdo e do grotesco, Luigi Pirandello, Friedrich Dürrenmatt, Eugene Ionesco, Samuel Beckett, é apenas repetir clichê aconchegante de que tal ou qual personagem não foi suficientemente “desenvolvido”, ou que o arco narrativo tal ou qual não se completa. Vale dizer: sem referências de fundo, Oh, Canada não passa de um profundo contrassenso.

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