
58º Brasília (2025) – Quatro Meninas
A estética rica de ‘Quatro Meninas’ esconde a superficialidade de seus conflitos e personagens
Por Marcelo Ikeda | 16.09.2025 (terça-feira)

– Este texto pode conter spoilers
Primeiro longa-metragem da realizadora Karen Suzane, Quatro Meninas parte de uma premissa promissora. Passado num Brasil pré-escravidão, quatro jovens negras buscam fugir de uma espécie de internato. Quando outras quatro jovens brancas descobrem o plano, elas optam por acompanhá-las. Boa parte do filme transcorre nessa travessia, em que as oito meninas precisam se integrar em conjunto para buscar suas liberdades. No entanto, enfrentam preconceitos arraigados, associados à suas classes sociais e especialmente à sua cor. Por esse mote, Quatro Meninas pode ser lido como uma espécie de coming of age, uma jornada de amadurecimento de personagens jovens em busca de sua liberdade e de suas identidades sociais. Em torno dessa jornada, estão os sonhos de jovens mulheres que precisam lidar com suas diferenças estruturais para, juntas, construir um caminho possível.
Ainda, o filme possui um extraordinário trabalho de direção de arte, chefiado por Ananias de Caldas, com ótima recriação do ambiente de época, e formidáveis figurinos, adequados à cena. É nítida a atenção da mise en scène aos pormenores e aos detalhes de um filme de época.
No entanto, apesar da potência da premissa apresentada, Quatro meninas desaponta por manter a jornada existencial do grupo de oito personagens apenas em uma camada de superfície, sem maiores profundidades. O maior confito surge quando as meninas negras se recusam a servir as brancas, o que gera revolta e um amplo embate, quase corporal, sobre as posições de classe. No entanto, esses dilemas não chegam a de fato ter desdobramentos mais potentes. A maior parte das personagens surge apenas de forma decorativa, sem que seus desejos ou seus universos interiores sejam desvelados. O filme permanece numa certa platitude na investigação da potência do desejo dessas personagens, ou mesmo nos conflitos e nas diferenças entre elas. Os diálogos muitas vezes soam por demais literários ou ainda literais, dificultando a adesão por parte do espectador. Os caçadores que vão atrás das frágeis meninas simplesmente somem no meio do filme.

O cenário de época é meticulosamente recriado, mas será que as emoções das personagens encontram o mesmo cuidado?
As opções de mise en scène sempre contribuem para domesticar os supostos conflitos ou desdobramentos, que nunca irrompem para além de uma platitude, exposta na beleza pictórica dos planos, objetos e adereços. Essa ênfase no adereço em vez da densidade da trama ou dos conflitos internos é, a meu ver, o mais forte elemento que aponta para o fato de que no fundo, infelizmente, esse filme feminino libertário, é no fundo extremamente conservador.
Se as personagens movem esforços para sair da casa-grande, em nenhum momento, em nenhum plano, a diretora e a equipe do filme se esforçam para sair da casa-grande do cinema. O filme não está do lado das personagens em romper com o sistema e buscar sua liberdade mas, ao contrário, parece preso a uma redoma em torno de sua autolegitimação a partir de pressupostos de premissa que estão por trás da materialidade do filme em si, apenas no campo das intenções. É como se a mise-en-scène do filme e sua institucionalização sem conflitos soasse como se o filme estivesse no fundo do lado dos patrões, ou, na melhor das hipóteses, do lado das mimadas meninas brancas, que permanecem no fundo esperando que continuem a ser servidas.
O desfecho é ainda mais problemático, propondo uma aliança sem conflitos entre as oito meninas, quando elas se dão as mãos, numa espécie de ciranda conciliatória. De forma pura e idealizada, Quatro meninas não se difere muito de O guarani, de José de Alencar, quando no seu clássico final, Peri e Ceci partem juntos na jangada, enquanto a natureza se inunda e a velha fazenda desaparece sob as águas. Esse drama romântico alencarino é encenado como se fosse uma versão de Éramos seis, aos moldes de uma telenovela das seis. Agora, claro, adaptado às contingências dos novos tempos do cinema brasileiro, com robustos valores de produção, coprodução internacional e adesão ao cinema feminista negro.
Não precisa ter lugar de fala mas apenas bom senso para afirmar que mulheres negras que rompem com o sistema em torno da sua liberdade e de suas ancestralidades merecem uma narrativa melhor, que examine de forma mais profunda suas identidades e que desmascare de forma mais radical as hipocrisias de uma sociedade branca e conservadora. Optando pelo adereço de relicário, domesticando e apaziguando os conflitos, infelizmente não foi o caso de Quatro meninas.
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