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Críticas

Mato Seco em Chamas (texto #2)

O precário é o visceral em Adirley Queirós

Por Ivonete Pinto | 14.03.2023 (terça-feira)

As primeiras cenas, muito escuras, causam desconforto. Não enxergamos direito, não sabemos exatamente o que aqueles personagens fazem ali, parece que estão extraindo petróleo da terra. Aos poucos, a fotografia (Joana Pimenta, que assina também a codireção) vai nos deixando ver melhor  através de precisos recortes de luz entre o líquido espesso e a silhueta dos personagens.  Este prólogo de 14 minutos precisava ser tão longo já que pouco informa? Decerto que não, mas assim que entramos no clima, também fica claro que não seria desta vez que Adirley Queirós seguiria algum manual de roteiro.

Mato Seco em Chamas (2022)  só reafirma o estilo do diretor pela estética do precário, ainda que intenso. Pelo menos desde Bang bang (1971), de Andrea  Tonacci, os cinéfilos estão acostumados com a desordem narrativa, com os cenários pobres, onde impera o deboche. A diferença é que Mato seco… demora-se para concluir sua proposta. Enquanto Bang bang dura 93 minutos, em Mato seco  são 153 minutos, tempo de sobra para entrarmos na #odeiofilmescommaisdeduashoras. Qualquer montador diante do filme fica com os dedos coçando para cortar alguns dos minutos excessivos.  Especialmente nos depoimentos, quando sai dos assuntos principais e tergiversa.

Talvez venha daí o fato de que não agrade críticos rigorosos (no bom sentido) como Eduardo Escorel, que não embarcou nesta nave de Queirós. As objeções do crítico da Piauí (leia o texto aqui), que é também  montador e diretor, não ficam só no tempo esticado do filme. A propósito, a montagem é assinada por Cristina Amaral, que dispensa apresentações, mas vale lembrar que ela montou Serras da desordem, (2006), de Tonacci, outro exemplar de mais de duas horas, plenamente justificadas. Considerando que a montadora é conhecida pelo profícuo diálogo que estabelece com os diretores e diretoras com as quais trabalha,  imagina-se, por isso,  que nenhum segundo está ali em Mato seco…  sem que uma imensa discussão com  Queirós tenha havido.

A montagem, entretanto, não pode criar cenas que não existem no material filmado e a precariedade do estilo de Adirley Queirós envolve lacunas  e inverossimilhanças, como o líquido escuro extraído do poço de petróleo transformado em gasolina em passe de mágica. Ou a gente entra no universo de Queirós, ou nem passa perto.

Refinaria clandestina de petróleo nos arredores da Ceilândia? Ou a gente entra no universo de Queirós, ou nem passa perto.

Legitimidade – O poço de petróleo de Mato Seco equivale às naves espaciais de A cidade é uma só (2011) e Branco sai, preto fica (2014).  Feitas da carcaça de um carro ou de papelão, sem disfarce. As naves queirosianas representam um cinema que assume sua feiura, suas deficiências de produção como um dado a seu favor. Um Ed Wood com pegada social. A legitimidade de seus filmes está nesta precariedade, pois que é disto que ele fala. E fala da violência, onde o líquido que sai da traquitana é o mesmo que jorra em Sangue negro (Paul Thomas Anderson, 2007), só que simbolizando não o nascimento de um império. Ironicamente, o sangue negro da Ceilândia é clandestino, a revanche anárquica dos motoqueiros.

Os atores sociais de Mato seco…, sem perna, sem dentes, ex-presidiários, fossem profissionais, talvez não coubessem nos filmes de Queirós e nas suas histórias contundentes. O próprio diretor é morador de Ceilândia e a proximidade que tem com os personagens e o cenário não seria um valor em si,  não soubesse ele incorporar o contexto em cada filme, sem essencializar esta relação.

Aqui, em Mato seco…, vemos mulheres à margem, uma delas é Léa (Léa Alves da Silva), recém-saída de um presídio (os personagens de Era uma vez Brasília também são ex-presidiários). Lésbica, violenta, sem dentes, três filhos que não consegue criar, nunca teve um único emprego  (com carteira assinada, reforça o filme). No filme, se joga na produção do petróleo-gasolina com a irmã Chitara, (Joana Darc, quem dá  o melhor texto, sobre nascer na favela, sobre ter filho aos 15 anos).

Léa assume uma performance dela mesma, numa extraordinária  conexão com a câmera. Vemos ali confiança e entrega, numa  espontaneidade que torna, sim, o filme um documentário. Como a sequência da campanha eleitoral de Andrea Vieira (dona do poço de petróleo) pelo PPP (Partido do Povo Preto), quando diz que vai legalizar o mototáxi. Em paralelo, uma (enorme) sequência documental com os “patriotas” em plena campanha para aquele que meses depois venceria as eleições. Aparecem em cena como zumbis chapados cantando o hino nacional, enquanto a fictícia candidata do PPP defende a legalização dos mototáxis, para quem vende a gasolina clandestina. Ou seja, uma teia de relações que o roteiro (ou a montagem) estabelece e que rende muito debate.

Ok, Escorel tem razão, documentário mesmo Mato seco… não seria, pois que boa parte é  encenação (situações propostas pelo filme para serem dramatizadas, como a candidatura de Andreia). Pouco importa. Branco sai, preto fica, com sua nave espacial também  não é majoritariamente ficção científica, mas não deixa de ser (aguardem o lançamento do livro da Abraccine, 100 filmes fantásticos essenciais, onde escrevo sobre este filme de Adirley Queirós). A categorização por gêneros ultimamente é apenas uma leve sinalização para encaixarmos os filmes.

Curioso é que em Mato seco… há uma sequência totalmente documental em um culto evangélico. Estão cantando uma música que fala em faraó, apocalipse, Egito… Afinal, se este mundo dos fiéis já é tão absurdo, por que não podem extrair petróleo com as próprias mãos e transformar em gasolina? No fim das contas, tudo em todo lugar, ao mesmo tempo.

Com ou sem gênero, o que não falta nos filmes de Adirley Queirós é a denúncia contra a violência estatal. Em chave irônica, em Mato seco… o  aparato policial entra na jogada, com direito a música de Roberto Carlos (A montanha). Ouvir “Obrigada senhor por mais um dia” vindo de um caveirão põe qualquer sala de cinema abaixo. E o Festival de Brasília já foi palco desta catarse algumas vezes.

O cinema visceral de Adirley Queirós, que bem ou mal transpõe fronteiras ao ser exibido em festivais estrangeiros – de Berlim a Pristina -, alinha-se a outros títulos recentes, como Noites alienígenas (Sérgio de Carvalho, Acre) e as produções da Filmes de Plástico, como Marte um (Gabriel Martins, Minas Gerais). São exemplares periféricos dentro de uma cinematografia nacional periférica por si só.

São filmes que atualizam Glauber Rocha em uma verve social, e que por vezes afrontam nossa disposição para o jogo da alteridade. Muito difícil nos colocarmos no lugar de uma Léia. Mas elas existem, e não só no bairro do Sol Nascente, na Ceilândia, só que  o cinema calcado no bom-gosto não tem lugar para elas.

Leia também análise de Humberto Silva para Mato seco em chamas

 

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