
Golden Eighties (1986)
Uma Política do Frívolo: Davi Barros escreve sobre o cinema de Chantal Akerman
Por Davi Barros | 01.10.2025 (quarta-feira)

“Mas existe um duplo impulso de felicidade, uma dialética da felicidade. Uma forma da felicidade é hino, outra é elegia. A felicidade como hino é o que não tem precedentes, o que nunca foi, o auge da beatitude. A felicidade como elegia é o eterno mais uma vez, a eterna restauração da felicidade primeira e original. É essa ideia elegíaca da felicidade, que também podemos chamar de eleática, que para Proust transforma a existência na floresta encantada da recordação.”
Walter Benjamin, A imagem de Proust.
À primeira vista, talvez para alguns espectadores dos anos 1980, possa parecer incongruente uma realizadora como Chantal Akerman, responsável por alguns dos filmes mais desafiadores e inovadores de sua época como Jeanne Dielman e Eu, tu, ele, ela, dirigir um musical que em alguma medida homenageia aquelas da Hollywood clássica. Como ir de Michael Snow e Andy Warhol para Vincente Minnelli e Charles Walters? Essa oposição binária entre cinema experimental e cinema clássico/comercial não interessa muito para a realizadora, que aqui se apropria de um gênero popular, tido como “menor e meloso”. Este filme representa uma virada de chave na carreira de Chantal: se em seu curta-metragem Family Business (1984) ela já havia apontado um gosto claro pela comédia, aqui ela encontra o perfeito equilíbrio entre homenagem e pastiche, em um musical que brinca com as artificialidades e exageros típicos desse gênero, de forma jocosa. O que a diretora nos apresenta aqui, para além de outros filmes posteriores como Nuit et Jour (1991) e Um Divã em Nova York (1996), é uma possibilidade de brincar e realizar subversões no que é entendido como mainstream, mais um lugar propício para experimentações como fora o cinema estrutural para ela nos anos 1970, e frívolo, já que os gêneros no qual Chantal trabalhou são vistos como feminino, e em grande parte são desvalorizados por conta disso.
Seguimos um grupo de vendedoras e frequentadores de um shopping, em foco principal está a paixão de Mado (Lio) por Robert (Nicolas Tronc), que ama Lili (Fanny Cottençon), que se envolve romanticamente com Monsieur Jean (Jean-François Balmer). O filme é esse grande carrossel ophulsiano de amores não correspondidos e desejos frustrados, cada personagem esconde uma aflição romântica distinta. Corações sonhadores, sempre com o olhar distantes e prestes a cantarem canções. É quase impossível não lembrar de Jacques Demy, que está para o musical francófono como Douglas Sirk está para o melodrama: é impossível falar do que veio depois deles em seus respectivos gêneros sem os mencionarem. Mas Chantal está muito longe de fazer uma simples imitação barata do estilo do cineasta francês, Golden Eighties (1986) é um filme inquestionavelmente de sua autoria. Das cartas que trazem notícias para casa, da menção ao holocausto e da crise econômica, um olhar atencioso aos personagens da classe trabalhadora, além de outras questões que passaram a surgir em seu cinema com mais força nessa década, como essa coreografia de corpos dançantes se esbarrando e se desencontrando constantemente, já presentes em Toda Uma Noite e Hôtel des Acacias, ambos de 1982, elemento esse que certamente pode ser atribuído a influência de Pina Bausch em seu trabalho.

As trabalhadoras do salão de beleza, parte do coro grego do filme.
Como todo bom musical, os coadjuvantes são essenciais e tão importantes para a história quanto os protagonistas. Há diversos planos nos filmes em que um grupo de personagens amontoados se espremem entre si para observar alguma situação. Para além dos rapazes sempre apontando as tolices de Robert (remetendo um coro grego), e as trabalhadoras fofoqueiras, à la As Mulheres de George Cukor, entre elas figura a jovem Nathalie Richard, que nove anos mais tarde protagonizaria outro musical demyniano: Paris no Verão (1995) de Jacques Rivette. Essa pluralidade de personagens serve também como um espécime de espelho: em uma das cenas do filme, Jeanne (Delphine Seyrig) aconselha alguém a seguir seu coração, só para segundos se contradizer ao se deparar com seu amor do passado, Eli (John Berry), pelo qual ela ainda nutre sentimentos, e recuar dele com o medo estampado no rosto. Mesmo se tratando de um musical encantador com cores maravilhosas que saltam os olhos, os personagens são falhos e receosos como na realidade, com alguns usando disfarces de gangsters e femme fatale. Em seu livro Utopias da Frivolidade: Ensaios Sobre Cultura Pop e Cinema (2014), Angela Prysthon, abordando um dos primeiros longas de Jacques Demy, diz que “a dimensão utópica não se encontra propriamente no filme, mas nas promessas perdidas, no que é apenas entrevisto, no que é fugidio”. O mesmo acontece aqui: a utopia se revela nesse mundo que os personagens sonham acordado: nas cartas que Sylvie recebe de seu amado em terras estrangeiras, nas falsas carícias que Robert faz em Mado e nas promessas amorosas que Eli revela para Jeanne. Por breves segundos, todos eles conseguem sentir essa felicidade idílica, sem precedentes, incomparável a qualquer outra coisa nesse mundo. Sentimento similar talvez ao encantamento que espectadores sentem ao ver uma dança em Technicolor entre Fred Astaire e Cyd Charisse, vislumbres de um paraíso distante mas próximo aos nossos corações.
Chantal brinca maravilhosamente com os clichês hollywoodianos e do musical, ampliando a artificialidade e dessa forma as colocando em primeiro plano. Isso é visualizado perfeitamente em uma cena em que dois personagens, clamando um pelo outro, são impedidos de se encontrarem devido a um grande fluxo de pessoas que surgem do nada e as levam para sentidos opostos, como os amantes na icônica cena final de O Boulevard do Crime de Marcel Carné. De certa forma, é um filme de cinefilia pelas várias referências que Chantal imprime: seja nos posters pendurados no cinema, como Mortalmente Perigosa de Joseph H. Lewis ou ao colocar um americano em um país que fala francês, como Gene Kelly em 1951. Mas se em muitos finais da Hollywood clássica os personagens, por um milagre do destino, conseguiam na última hora se juntarem ao seu par romântico, no musical de Chantal mesmo quando o casal principal se reencontra, o que prevalece é o coração partido de Mado ao ser trocada por outra no dia de seu casamento. Douglas Sirk fora mencionado anteriormente neste texto, e aqui é possível lembrar de Palavras ao Vento (1956): o que marca no final desse melodrama clássico não é o final feliz de Rock Hudson e Lauren Bacall, mas as lágrimas amargas de Dorothy Malone ao abrir mão do homem que ama para ele poder ser feliz, como a pobre Mado, lembrando ao público que para a felicidade de alguns existir é necessário a infelicidade de outras partes, escondidas em uma janela ou chorando por trás de uma vitrine. Sirk, um pouco como Chantal, também se utilizou de gêneros populares para deixar escapar entre eles certo valor subversivo que foge da correnteza normativa de Hollywood (lembrando as palavras de Nicole Brenez: “É como o sequestro de um avião: desconstruir a indústria, sequestrá-la e fazer filmes críticos extraordinários.”)

Quando a ficção se insere na realidade.
De todo o ensemble do filme, quem se destaca é Delphine Seyrig como Jeanne, outra mãe marcada pela guerra que teve de se conformar com os padrões sociais. Seu sorriso luminoso e seus conselhos amorosos que nem sequer ela segue, lidando com jovens rebeldes que não querem agradar a ninguém (personagens en passant que poderiam facilmente ter saído de algum outro filme da Chantal, como Michèle em Retrato de uma Garota do Fim dos Anos 60 em Bruxelas), com o cotidiano abalado pelo retorno dessa antiga paixão que é Eli. Diferentemente dos jovens ingênuos, Jeanne conhece as durezas e desilusões da vida, como a mãe da própria Chantal ela também passou por um campo de concentração, seu presente é atormentado por inúmeras memórias que ela tenta ignorar. Com Eli ela vive brevemente a felicidade como elegia, no escuro do cinema ou em cantos escondidos de uma loja de roupas. Em uma das primeiras aparições da atriz, uma iluminação artificial aparece só para dar destaque ao seu rosto, para nenhuma outra personagem do filme tal recurso é utilizado. Delphine/Jeanne ganha seu próprio número musical, com a voz um tanto desafinada, ela põe seu coração para fora e termina a canção com um sorriso enquanto olha para a câmera, nos confessando que ela gostaria de fazer amor (mais uma heroína akermaniana onde o desejo sexual deve passar primeiro pelo sentimento amoroso, como a protagonista de Os Encontros de Anna). É uma cena muito tocante por sua vulnerabilidade e demonstra a completa paixão de Chantal pela personagem e pela atriz, já que Lio, cantora belga profissional que interpreta uma das personagens de destaque, passa o filme todo sem uma canção.
Assim como os espectadores ao fim de uma sessão de cinema, os atores/personagens deixam o palco onde se desenrolaram os seus dramas para adentrar as ruas, retornar à realidade. Chantal, como Jacques Demy, insere seu musical entre a ficção e o real, a magia e encantamento intrínsecos do gênero se misturam com as amarguras e desencantos da vida banal e corriqueira. Chantal se insere em uma certa tendência maneirista que encontramos em vários diretores dos anos 1980, melhor descrita por Serge Daney e reiterada por Gilles Deleuze em sua carta ao crítico, intitulada Otimismo, Pessimismo e Viagem (1986): “quando não há mais nada para ver por trás dela, quando não há mais muita coisa para ver nela ou dentro dela, mas quando a sempre imagem desliza sobre uma imagem preexistente, pressuposta quando o “o fundo da imagem é sempre já uma imagem”, indefinidamente”. Nessa linhagem maneirista dos anos 1980, encontramos Francis Ford Coppola retomando o musical hollywoodiano no belo O Fundo do Coração (1981), mas também em Hans-Jürgen Syberberg na sua releitura pós-guerra de uma ópera de Richard Wagner com Parsifal (1982), e Manoel de Oliveira no deliciosamente bizarro Os Canibais (1988), uma das suas obras mais singulares. Como o musical de Chantal, são filmes muito conscientes de sua artificialidade e de toda uma tradição artística que os precedem, entre o clássico e o moderno, além de se inserem em um contexto de saturação de imagens e signos numa década marcada por uma forte instabilidade política e ascensão do neoliberalismo.
Nesse espetáculo dentro de outro espetáculo (Les Années 80, dirigido por ela três anos antes deste sobre a feitura de um musical, um filme dentro de outro filme), de manequins sempre precisando de alguém para lhes porem o sapato, as imagens do passado histórico (Auschwitz, a crise econômica) e fílmico (Chantal que referencia Demy, que por sua vez que referencia Ophüls) deslizam entre si nesse mercado do desejo montado pela belga. Com seus personagens sonhadores e românticos, sempre esperando por algo ou alguém, o filme também remete a parceria da diretora com Eric de Kuyper, outro realizador de obras onde imagens deslizam sobre outras já existentes, que trabalharam em 1974 e retomariam em uma adaptação de Marcel Proust, A prisioneira (2000), e na comédia familiar Amanhã Nós Mudamos (2004). Como uma homenagem a Roland Barthes, que abre o seu Pink Ulysses (1990), essa mesma epígrafe poderia estar presente neste musical agridoce de Chantal: “Apenas as pessoas que amam permanecem esperando”.
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